domingo, outubro 29, 2006

As pessoas de minha vida

Recentemente foi veiculado um comercial onde um camarada aparentando seus trinta anos vem andando pela rua acompanhado por uma fauna variada de personagens. A todo instante ele é abordado por alguém: crianças com uniforme escolar, uma babá, um mágico, palhaços, um grupo de meninos com uma bola de futebol, o Fofão, duas coelhinhas da Playboy, o boneco da Michelin, e por aí vai. Num determinando momento, ele pára na esquina, diante de um belo automóvel. Então se volta para trás, e não vê mais ninguém. Surge o slogan da campanha: “Sua vida trouxe você até aqui”, e dizem o nome do novo carro que vai levá-lo daqui por diante.

Pois bem, esse comercial ficou martelando em minha cabeça, e vê-lo numa revista só fez por deixá-lo mais vivo e aumentar seu encanto para mim. No domingo passado, enquanto atinava como usá-lo no Boa Semana, acabei tendo a atenção voltada para um caso curioso que passou na TV.

Um norte-americano de 55 anos descobriu que tinha três tumores malignos no cérebro, e sua expectativa de vida era de alguns meses. A princípio desesperado, ficou pensando no que seria de sua filha, uma jovem adolescente. Começou a rever seus passos, e deparou-se lembrando das pessoas que haviam passado por sua vida. Surpreendeu-se ao se deparar com o número mil. Mas não parou por aí.

Através de amigos em comum, pesquisas em listas telefônicas, consultas a antigos colégios e empresas, começou a buscar essas pessoas. Ligava para elas marcando um encontro no Central Park e ali dizia que vinha para se despedir, mas antes queria agradecer a importância daquela pessoa em determinado momento de sua vida.

Começou a escrever um diário narrando esses encontros, diário que seria a sua herança para a filha. O último capítulo, pediu à esposa que o escrevesse. O diário acabou virando livro (depois coloco o nome, prometo).

Ora, juntei o comercial do carro com a história do americano, e aí tinha os ingredientes para escrever a crônica dominical. Mas texto é que nem massa de pão caseiro: se o tempo não estiver bom, não cresce. Foi o que aconteceu: a idéia embatumou, para usar o vocabulário de minha mãe ao deparar-se com aquela massa pesada.

Passei toda a semana com isso na cabeça, e prometi a mim mesmo que hoje escreveria. Pois aí está. Não coloco nenhum comentário ou “moral da história”. Apenas conto o que vi e ouvi, pra cada um pensar. Não vou dizer que já comecei a revirar os arquivos da memória em busca de tantas e tantas pessoas que passaram por minha vida, e que são importantes. Sim, ainda são, pois se não estão mais presentes fisicamente, de alguma forma elas permanecem em mim, ainda que no subconsciente.

Deparei-me com lembranças curiosas: a dona Vicentina, que fazia um inesquecível doce de casca de laranja seleta, ou do João do Saco, andarilho que metia medo em nós, crianças, mas que era tão inofensivo. Ou do velho Angel, amigo de meu avô, sempre de chapéu preto e guarda-chuva. E aquela menina loira, filha do verdureiro, cujo nome não me lembro, mas que tanto amei nos meus 13 anos... Tantas pessoas, tantas histórias...

Pensem vocês nas pessoas que passaram em suas vidas, e prestem atenção no seguinte: aquelas que nos parecem hoje menos importantes também deixaram sua marcas.

Boa Semana!!!

segunda-feira, outubro 23, 2006

Do contra

Nunca gostei do in, nem de seu irmão caçula, o im. Por quê? Ora, eles são dois desmancha prazeres, dois pessimistas que vivem entortando tudo em seu caminho. Como assim, não entendeu?

Ora, não bastasse existir a tristeza como contraponto da felicidade, lá vem o abelhudo do in, e cria a infelicidade. Ciumento, seu irmão aparece e o que era possível, deixa de ser, tornando-se impossível.

São dois mal humorados, que vivem atrapalhando e invertendo tudo. O certo perde a certeza, o puro ganha máculas, o perfeito não consegue cumprir sua utopia. São a encarnação do espírito de negação.

Não bastassem os dois irmãos, ainda surgem alguns primos, como o des. E sempre aparece para estragar o encontro dos amantes, o enlace de um casal, a harmonia de um lar. A graça torna-se trágica ao lado dele, a esperança perde seu brilho, até o que havia se agrupado acaba por se dispersar.

Sim, alguém me contesta e prova que nem só de sombras vivem esses sujeitos. Imortal, imaculado, imorredouro, imperecível, inesquecível, descoberto. Certo, mas nada que os redima de tantos desatinos. Incansáveis, seguem sempre em sua tarefa inglória de impedir ou desbotar o lado bom das coisas.

Não gosto deles, são antíteses de si mesmos, capazes de reverter a situação ao seu bel-prazer. Não bastassem todos os contrários que existem no mundo, ainda invertem o sentido das coisas e das gentes. São como pequenos deuses pagãos, que se divertem em criar e desfazer, em rir das mutações e contrastes que criam.

São como tantas pessoas, que passam a vida a negar o que há de bom, o que há de belo. São seres que nunca conseguem olhar alguém ou alguma coisa sem a sombra da inveja, do rancor, do ódio. Incapazes de criar por si sós, vivem à sombra dos outros, à espera da oportunidade de agarrá-lo e destruí-lo, que não é outra coisa senão destruir transformar o que era feliz em um pobre infeliz.

domingo, outubro 15, 2006

Boa Semana - Meu ideal

Enquanto escrevo penso na reação que terão os leitores diante de minhas palavras. Pelo fato de conhecer a maioria dos três ou quatro abnegados que me lêem, é impossível não pensar no que eles vão achar sobre este ou aquele assunto. Muitas vezes mudo uma frase, uma idéia, uma palavra que seja, para evitar ferir suscetibilidades. Noutras escrevo algo que se assemelha àquela piscadela de cumplicidade que temos com algumas pessoas, algo como um código que vai passar despercebido pelo restante dos leitores.

Em que pese a vaidade que move toda pessoa que se dispõe a sentar diante de um computador e escrever, existe também a preocupação em agradar, preocupação que se divide entre o que se escreve e para quem se escreve. Muitas vezes deixo de publicar um texto que me encanta, pois acho que não encontrarei eco em quem o lê. O contrário também acontece corriqueiramente: um texto escrito sem maiores expectativas agrada em cheio, recebo elogios e parabéns.

Tenho uma preocupação constante: mesclar poesia e simplicidade. Isso não é tarefa das mais fáceis, poucos os escritores que conseguiram realizá-la com êxito. Um dos mais felizes nesse ponto, sem dúvida nenhuma, foi Rubem Braga
[1]. Existem crônicas antológicas desse mestre, e vale a pena vocês lerem mais sobre ele. Uma delas, Meu Ideal, em que deseja escrever uma história que fizesse feliz certa moça que vive triste e solitária, é uma das mais belas páginas de lirismo de nossa literatura.

A crônica não é um gênero maior, já escreveu Antonio Candido
[2]. “Graças a Deus”, completa o crítico, “porque sendo assim ela fica perto de nós. (...) Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição”.

Parafraseando o velho Braga, meu ideal seria escrever algo que fosse real ainda que tratando do abstrato, que pudesse mexer com o coração de quem lê, e que nesse momento sentisse que por trás de toda palavra existe alguém de carne e osso, que colocou o cérebro pra funcionar em busca do que escrever. E cujos dedos bateram no teclado juntando as letras que dessem forma a esses pensamentos voejantes.

O desejo do escritor é durar mais que os breves minutos da leitura. É deixar de ser capítulo de novela para se tornar parte do mundo real de quem lê. Utopia? Talvez. Mas nada que não valha a pena buscar.

Boa Semana!



[1] Escritor brasileiro (Cachoeiro do Itapemirim, ES, 1913 – Rio de Janeiro, RJ, 1990), considerado por muitos o maior cronista brasileiro desde Machado de Assis. http://www.releituras.com/rubembraga_bio.asp

[2] Crítico literário e sociólogo (Rio de Janeiro, RJ, 1918). http://www.pacc.ufrj.br/literaria/candidocronologia.html

Entrementes

Meu avô era daqueles portugueses antigos que quebra, mas não torce, e de poucas palavras. Na minha infância, sua presença sempre inspirou medo, medo de seus gritos tonitruantes, de seu olhar severo, sempre pronto a repreender. Com o passar dos anos nossas relações se estreitaram, e muitas vezes ouvi histórias de seu tempo de moço, das dificuldades por que passou. Algumas ficaram marcadas com maior relevo em minha lembrança. Uma era a de seu avô (meu trisavô!), um pobre lavrador chamado Teodósio...

Pois na segunda metade do século XIX a vida rural em Portugal ainda se assemelhava ao período feudal, quando camponeses trabalhavam quase que por um prato de comida. A fome rondava e as doenças, como tuberculose e sífilis, ceifavam vidas no atacado ou deixavam apenas sombras humanas vegetando uma existência miserável.

Esse meu trisavô Teodósio era mais um nessa massa anônima. Trabalhava numa quinta – que é o nome que os sítios têm em Portugal –, e dava-se por feliz por ter o que comer em troca de seu suor. Mas diz o povo que a necessidade é mãe da criatividade, e esse meu antepassado é prova viva, quer dizer, morta, do provérbio. Ah, vocês entenderam...

Num dia de muita chuva, quando parecia impossível trabalhar na lavoura, ele estava num canto da cozinha, aquentando perto do fogão à lenha. O beiral da casa chorava suas lágrimas, esburacando o chão em pequenas poças. Surge o patrão, corre os olhos pela paisagem, olha o céu, e declara:

- É, Teodósio, acho que hoje não podes trabalhar, pelo jeito a chuva não cessa. Melhor ires embora.

Ora, se ele se fosse perdia o almoço, e era pr´amor da comida que ali estava. Não podia ir-se embora.

- Veja lá, meu senhor, parece que clareia pros lados das Matas. Vou aqui a cortar uns cavacos pra o fogo, entrementes o tempo melhora...

O patrão torcia o nariz, mas não respondia, e lá ficava o ladino Teodósio, cavaqueando. Depois de almoçar, esticava os braços; aí se chegava junto à porta, olhava o céu e dizia candidamente:

- Pois acho que meu senhor tem razão: hoje o dia está perdido. Mas de hora em hora, Deus melhora. Até amanhã!

E lá se ia o bom Teodósio, sem nunca suspeitar que mais de um século depois alguém ainda se lembraria de seu nome: Teodósio Pinto Ferreira. Dele não ficou nenhum retrato, nenhum documento, nada além dessa história. Aliás, a única.

Entrementes, a vida segue...

domingo, outubro 08, 2006

Boa Semana - Ereções

Na feira de sábado estava a discussão armada em torno da barraca do Toshio. Seu Cármine, apesar de italiano, envolvia-se na política brasileira como se fosse o mais ferrenho dos patriotas.

- que Lula, nem metso Lula. Agora ele já viu que não ganhar, vai voltar pra terra dele com rabo entre as pernas. Baiano maledetto!

- Epa!!! Num vem cum esse papo de baiano, não, seu Carmi. Ele é pernambucano. Baiano sou eu, e com mutcho órgulho, visse?, respondeu nervoso o Josimar, baiano do Recôncavo, como gostava de dizer.

- Má vá, são tutti cabeça chata! Pra mim, passou de Minas, é tudo baiano.

Enquanto discutiam sobre gregos e baianos, na esquina surgia o vulto vagaroso de seu Fonseca, dobrado sobre sua bengala. Beirando os noventa anos, tinha uma voz anasalada, semelhante a uma buzina daquelas usadas pelo vendedor de algodão doce. Seus olhos, ainda que auxiliados pelas grossas lentes dos óculos, não conseguiam distinguir os que estavam na banca do Toshio, mas imaginava quem iria encontrar: o Cármine, o Josimar, o Vicentinho da Nena, o Bola e, claro, o Toshio. Continuou em seu vagaroso caminhar, sem saber que os companheiros já o tinham avistado:

- Lá vem seu Fonseca, coitado, disse o Vicentinho da Nena.

Era o mais novo da turma, mal entrado nos quarenta. Vivia de pequenos expedientes, um bico aqui, outro ali, mas quem o sustentava mesmo era a mãe, a Dona Nena. Era uma velha de uns setenta anos, verdadeiro pé-de-boi, que trabalhava na padaria do Soares. Viviam dizendo que graças ao trabalho dela é que o portuga todo ano podia viajar pra terrinha. Ali na roda também estava o filho do Soares, o Bola, que com quase 120 quilos dispensa maiores apresentações. Foi ele quem se levantou da arriada cadeira plástica e foi oferecer o braço ao Seu Fonseca, que quase caiu ao descer da calçada.

Quando soube que o assunto era eleições, apertou os olhos e pôs o dedo na testa franzida, num gesto muito seu, falando em seguida:

- Ih, me lembro quando o Getúlio veio aqui no bairro, inaugurar a avenida, nééééé?

- Ché, agora me vai falar do Getúlio? Tamô falando do Árquimi, seu Fonseca. eu mereço, viu!

- Calma, aí, Seu Cármine, deixa o seu Fonseca, coitado. Era mania do Vicentinho, chamar todo mundo de coitado...


Josimar completou:

- É isso mesmo, Vicentinho. O Seu Carmi num quer dexá ninguém falá, eita cabra da peste!

E assim prosseguia a discussão, cada qual defendendo o seu candidato, e descendo a lenha nos adversários. Menos seu Fonseca, que lembrava, saudoso, do Adhemar. Ééééé, bons tempos!

Num momento em que a freguesia deu uma folga, o Toshio aproximou-se do grupo, e vendo a discussão acalorada, comentou com seu Fonseca:

- Sorte que só tem ereção cada dois anos, né?

Seu Fonseca, que estava sonhando nesse momento com as pernas da Virginia Lane, achou que o japonês estava duvidando da sua virilidade, e como depois contou o Bola, “o velho virou bicho”.

- Broxa é você, japonês safaaaado!

Todo mundo silenciou diante daquela explosão, e os transeuntes que passavam logo formaram a rodinha. E seu Fonseca seguia apoplético:

- Estou velho, mas não estou morto! Pensa que não dou mais no couro? Pois mande a senhora sua mãe aqui pra eu mostrar!

Aí foi o Toshio que pulou o balcão da barraca, esquecendo o respeito pelos mais velhos e o fato de seu Fonseca já estar caducando, e foi pra cima do velho. Este, com os reflexos já combalidos pelos anos, começou a distribuir bengaladas pra todo lado. A primeira vítima foi seu Cármine, seguido pelo Vicentinho da Nena. O Bola interpôs-se entre Toshio e seu Fonseca, formando uma verdadeira barreira humana, enquanto a turma do deixa-disso intervinha.

Desde então a famosa rodinha que se formava em torno da barraca do Toshio se desfez. Mesmo depois que ele se desculpou com seu Fonseca e explicou que não falava sobre desempenho sexual de ninguém, mas sim sobre política:

- Senhoro sabe que na ereção não gosto de bligá, né. Toshio é marufista.

Boa Semana a todos desta terra de todas as gentes.

domingo, outubro 01, 2006

...

Tradicionalmente escrevo o Boa Semana com um tema bem humorado, leve, que trace o esboço de um sorriso no rosto de quem lê. Algumas vezes sai melancólico, é certo, mas sempre com um fio de esperança e invariavelmente com o desejo de uma nova semana melhor que a anterior.
Hoje, entretanto, não consigo escrever nada assim. Hoje escrevo sob o impacto do choque e da tristeza de imaginar 155 pessoas perdendo a vida num acidente aéreo. No ano em que se comemora o centenário do vôo do 14 Bis, quando Alberto Santos-Dumont realizou o sonho de Ícaro, também fica assinalado o maior desastre aéreo da aviação brasileira.
Leio na internet que as esperanças de encontrar sobreviventes são quase nulas, com uma declaração extremamente infeliz do presidente da Infraero: “São só corpos e pedaços de corpos, e mais pedaços de corpos”. Imagine os familiares das pessoas que estavam nesse vôo ouvindo essa frase imbecil. Não, não são corpos ou pedaços de corpos. São seres humanos, são pessoas que têm histórias, não apenas números impessoais ou frios cadáveres. São pais, mães, filhos, namorados, irmãos. São pessoas que tinham alguém a esperar por elas em casa. São pessoas que tinham um futuro promissor ou que já gozavam o merecido descanso de suas aposentadorias. Um grupo de amigos que viajou para pescar no rio Madeirinha, e retornavam cheios de histórias e causos. Eles não são somente corpos. Muitos voltavam de viagens de trabalho, pessoas que certamente tinham responsabilidades profissionais que exigiam seu deslocamento pelo País. Esses também não são pedaços de corpos.
Surgem histórias de pessoas que não deveriam estar nesse vôo, mas que anteciparam seu embarque, e o inverso também. Uns nasceram de novo, outros não tiveram essa chance. Todos eles seres humanos, com seus medos, desejos, fraquezas, amores, sonhos. Não eram apenas corpos. Tampouco pedaços.
Não sei se vocês já repararam, mas quando no Jornal Nacional é anunciada a morte de alguma personalidade importante na vida do País, eles deixam reservado o último bloco para as informações principais sobre a pessoa. E ao encerrar o noticiário, no lugar do tradicional “Boa noite” risonho, o que vemos e ouvimos são expressões sérias e um lacônico “Até amanhã”. Nem mesmo tocam o também tradicional fundo musical. Silêncio, enquanto correm os créditos pela tela.
Pois hoje me reservo o direito de, em homenagem às vítimas e seus familiares, me despedir de vocês sem o infalível Boa Semana.
Em memória dos que se foram, e em respeito aos que ficaram, até a próxima semana.

Silêncio.......................................................................................................................................................