domingo, dezembro 16, 2007

Então é Natal

Prezado Papai Noel

sei que uma mensagem para o senhor deveria começar com Querido, mas a idade e a experiência da vida acabam por nos deixar mais impessoais, mais frios e acabamos fazendo tudo como se fosse proposta comercial. Mas deixe isso de lado, pois esta mensagem... mensagem não, esta cartinha tem outro objetivo.

Aos sete anos de idade (tardio, né?) descobri que o senhor não passava de uma mera representação criada para ludibriar as crianças sobre a origem dos presentes de Natal. Também era cômodo aos adultos jogar a culpa sobre suas costas quando o presente pedido não era entregue: "Ah, vc não deve ter pedido direito ao Papai Noel, ou então ele pode ter esquecido. Sabe como é, tantos presentes pra entregar...". Isso sem falar no aspecto chantagista da coisa: "Se não for um bom menino, Papai Noel não trará presente".

Aos sete anos eu vi, pelo vão da porta da sala, meu padrinho colocando a barba branca, já enfiado naquela roupa cuja origem nunca descobri. Eu achava mesmo aquela voz familiar; já tinha até comentado, sob riso dos grandes, que a voz do Papai Noel era igual a do tio Chico.

Não vou dramatizar a coisa, dizer que foi uma decepção incurável; não, não. Na verdade, acho que eu já sabia que tinha caroço naquele angu, mas só faltava mesmo uma confirmação. Confesso que nessa idade tive decepção bem maior, que lamento até hoje. O ano de 1983 ficou indelevelmente marcado.Vou contar.

O senhor lembra do Mappin, tradicional magazine paulistano, por sinal de onde vinham os melhores presentes de Natal? Pois muito bem: além do tradicional papel verde que embrulhava as mercadorias, essa loja tinha um jingle memorável, conhecido em toda a cidade: "Mappin, venha correndo, Mappin, chegou a hora, Mappin, é a liquidação... Liquidação do Maaaa- ppin!". Tão tradicional como isso eram as famosas Quinzenas Mappin de diversas coisas: cama-mesa-banho, brinquedos, louças, tapetes, tudo que se possa imaginar. Para mim, quinzena era algo indissociável do Mappin, era coisa que só encontrávamos lá.

Pois até que um belo dia, na primeira série escolar, a professora começou a explicar o calendário: meses, dias, anos. Sete dias perfaziam uma semana, quinze dias completavam uma quinzena, 30 dias faziam um mês. Peraí, que história é essa de quinzena? Então quinzena não era artigo do Mappin? Quinzena era apenas o espaço de quinze dias? Foi a maior decepção de minha infância.

Não foi a única, claro, a vida me presenteou com muitas outras, porém essa ficou marcada. Anos depois, uma administração inepta levou ao fechamento desse tradicional estabelecimento que fazia parte da história da cidade. Outro golpe.

De qualquer modo, a despeito de não existir mais Mappin, ele fez parte de um período da minha vida: foi lá que comprei meu primeiro CD, sabia? Assim como o senhor, a Quinzena Mappin serviu para ensinar que sonho e fantasia são fundamentais para a infância, atuando como anticorpos que no futuro tornarão possível sobreviver à realidade do cotidiano.

Por isso, Papai Noel, que escrevo esta carta, pois o senhor é minha única esperança: as coisas que quero oferecer aos meus amigos não se encontram em lojas, nem mesmo na mega Casas Bahia lá do Anhembi, onde tudo pode ser indefinidamente parcelado no carnê ou no cartão. Amor, paz, respeito, compreensão, evolução, nada disso se encontra nas prateleiras cheias de festão e luzes.

Fico pensando se essas coisas existem de verdade ou se também foram criadas para iludir as crianças; entretanto, essa idéia me faz mal. Prefiro não acreditar nela, mas, se tudo for mesmo fantasia, então só o senhor é quem poderá me ajudar. Faça um lote bem grande de tudo isso que falei e deixe na casa de todos aqueles que vivem em meu coração.

Neste ano não pedirei nada para mim, pois já tive mais que o suficiente. Peço apenas para meus amigos e prometo ser um bom menino em 2008. Aí, quem sabe não posso ganhar uma Quinzena Mappin como aquelas da minha infância?

Feliz Natal e boa semana!

Ricardo

terça-feira, dezembro 11, 2007

A página 161

Foi assim que recebi da Dione:

"E eis que uma maldição veio ressucitar meu falecido blog: a maldição da página 161.
E eu, que gosto tanto do que é a esmo, resolvi encarar a brincadeira, que consiste no seguinte:

1 - procurar um livro próximo;
2 - abri-lo na página 161;
3 - procurar a quinta frase completa;
4 - postá-la no seu blog;
5 - não escolher a melhor frase nem o melhor livro;
6 - repassar a outros cinco blogs.

Recebi do Salvaterra , que recebeu da Carol Marossi , que recebeu da Julia , que recebeu de não-sei-quem.

Repasso para Kandy e Ricardo , que são dois dos poucos blogs que eu visito com certa frequência, eu que não sou tanto desse mundo aqui."

Bem, eu aceitei o convite, mas havia uma pequena dificuldade: qual livro próximo?

Fora os que estou restaurando, tenho ao meu lado uma pilha que usei para pesquisar imagens pro São Paulo Antigo e mais outro tanto sobre revisão que a Lets me emprestou.

Na dúvida, o bom e velho Lobato; na página 161 de Cidades Mortas:

"E com eles, poetas, pensadores, generais, a indústria, o comércio, a imprensa, todos, todos e tudo - fora as mães - zelam, como vestais, para que não se extinga o fogo sagrado do Ódio."

Ele fazia um retrospecto do papel da guerra desde o princípio dos tempos, falando sobre a humanidade que vivia a guerrear e criava deuses vingativos e sanguinários, que perseguiam e exigiam sacrifícios em sua honra. A Primeira Guerra Mundial era a mais recente carnificina perpetrada pelo Homo sapiens...

O melhor é que essa frase faz parte de um conto magistral, chamado "O espião alemão", em que um estrangeiro é preso na pequenina Itaoca durante a Guerra. Claro, um estrangeiro só poderia ser espião, e sendo espião, só poderia ser alemão. Prendem o bruto, mas como falar com o facínora? O conselho das autoridades decide chamar o Monsenhor Acácio, o sábio local que falava mais de quatorze línguas, vivas e mortas, inclusive o alemão, para que faça um interrogatório com o inimigo germânico.

Depois de uma breve palestra, o iluminado vigário surge cabisbaixo:

- O alemão desse homem (...) é o alemão turíngio da baixa germanidade valona da Silesia hanoveriana. Ininteligível, portanto, a quem, como eu, só conhece o alemão gramatical da alta germanidade dos Goethes, dos Lessings, dos Bergsons, dos Schneider-Canets.


E "traduziu" o que o prisioneiro disse:

- Ai éme inglix quer dizer, se não me falham as analogias glotológicas, "estou com fome". E é natural. Já bateu meio-dia.

E por aí vai a coisa...


segunda-feira, dezembro 10, 2007

Dona Agueda no País da Gramática

Enquanto escrevo, minha avó (a que a Kandy acha divertida) está aqui ao meu lado, folheando Tirando dúvidas de Português, um dos muitos livros que a Letícia me emprestou para treinar revisão. Cada tópico que lê pede a minha explicação; desde que me entendo por gente ouço ela dizer que precisa melhorar sua leitura. Há anos. Muitos. Muitos mesmo.


Quando criança ela literalmente fugia da escola. Detestava. Até hoje quando alguém reclama que o filho não gosta de estudar, ao contrário de recriminar a criança, sempre tem uma palavra de solidário consolo e compreensiva cumplicidade. Engraçado que para fazer contas ela é excelente, tem um raciocínio rápido, bate qualquer um aqui de casa; já para ler e escrever... Seus bilhetes são peças que dignas de figurar num tratado sobre hieróglifos. Só ela mesma consegue decifrar, e ainda fica brava com nossa ignorância: olha aqui, tão claro!


Agora está me sabatinando: quando se usa “se não” e “senão”; dou uma explicação que não a convence, porque diferente do que está no livro.


Então me faz a pergunta difícil: por que o português fala tão errado? Tento explicar entre a língua culta e a falada, e que elas estão divorciadas há muito tempo, por mais que alguns tentem escrever coloquialmente e outros falar de modo escorreito*.


Ela continua lendo, em voz médio-alta, escandindo as sílabas, relendo com diversas entonações. Lê a frase errada, em seguida lê a correta: “Ah, isto aqui é muito bom pra quem é burro!”. Não consigo segurar uma gargalhada; aproveito e agradeço o elogio indireto.


Então ela repete pela zilionésima vez que não gostava de ir à escola, que fugia das aulas, mas que hoje se arrepende. Aproveita para, pela enésima vez, me pedir um livro “bom”, que traduzo por bem- humorado, com poucos personagens (sei que personagem é substantivo feminino, mas prefiro masculinizar, como se fosse atleta pega em exame de doping) e com letra grande. Ah, sim, ela tem um método bem particular de ler: começa as vinte, trinta primeiras páginas, salta para o meio, lendo mais outro tanto e pula para as três últimas.


- Mas e se mudar a história ou alguém morrer, vó?



- Ora, azar dele.


Continua a ler, agora vendo a grafia das palavras com ss, s ou z. Quase choro quando pede para que eu explique o motivo das diferenças. Só está faltando mesmo dizer que vai comprar um livro igual pra ela; isso é batata. Perdi a conta de quantas cartilhas ela comprou e que depois de longo exílio nalgum armário foram doadas. Mas minha expectativa dura pouco:


- Ah, vou comprar um livro deste pra mim. Fica um tempo calada, pensativa, e dispara: Um não, dois: o outro vou mandar p´ro pinguço**... e ri ironicamente.


Nova gargalhada minha. Essa é minha avó.


Se não ou senão?


*Escorreito: culto, sofisticado. Sempre coloco uma palavra assim pra Kandy, ela se diverte com este meu rico vocabulário.

**Pinguço: apelido carinhoso que ela deu ao atual chefe (?) da Nação, por quem tem verdadeira ojeriza.


Ah, se algum "burro" mais se interessar: Tirando dúvidas de Português - Odilon Soares Leme, Editora Ática.