Semana Santa sempre me traz à memória algumas coisas marcantes de minha infância. Talvez Freud explique com palavras mais técnicas, mas eu prefiro a definição do Guilherme de Almeida: que somos reflexos de nossa infância.
Pois bem, quando eu era criança (sim, já fui criança um dia, apesar de ter gente que prefira acreditar que eu tenha vindo pra cá com o Circo Espacial), a partir da quinta-feira já se iniciava uma série de “não pode” e “é pecado” que nos inculcava um sentimento de culpa tão grande que a maior impressão que tenho desses dias era de escuridão, melancolia.
Não se podia ligar TV, rádio, vitrola, jogar bola, brincar, falar alto, xingar alguém, brigar, dar risada. Em casa, apesar do catolicismo mais de tradição que religião, essas regras eram observadas da mesma forma... Era somente um hábito que todos seguiam. A bacalhoada da sexta-feira era (e ainda é) imprescindível. Mas no sábado é que a coisa ficava boa: malhar o Judas.
Antes de me escarnecer, lembre-se que eu tinha 7, 8 anos, e não entendia nada sobre perdão, justiça ou oferecer a outra face. Ainda estávamos na lei de Talião: olho por olho, dente por dente. Mas o Judas era preparado com antecedência, deixando os retoques para a manhã do sábado tão esperado. Muitas vezes recheávamos o boneco com bombinhas; mais crescidos e maliciosos usávamos meias cheias de papel costuradas na braguilha aberta. Políticos sempre emprestavam o rosto ou o nome, e lembro de uma vez que minha madrinha fez com que retirássemos o nome do então presidente Figueiredo (“Credo, se a polícia pega vocês vão ver o que é bom!”) Os postes eram poucos pra tantos bonecos. Ao meio dia, rojões pipocavam pelo céu e começava a malhação. Em menos de 15 minutos só restavam trapos e jornal queimado pela rua, misturados ao cheiro de pólvora e uma sensação de dever cumprido: nós havíamos vingado Nosso Senhor! Um dia que me perguntaram: “Mas se Jesus perdoou Judas, porque vocês fazem isso?”, e minha resposta foi o silêncio. Como diz o ditado, de boas intenções é calçado o caminho do Inferno.
Isso não nos tornou bandidos ou justiceiros, foi apenas uma fase de nossa vida. Hoje eu não incentivaria meus filhos a fazer o mesmo, pois por mais que sejamos reflexos de nossa infância, temos a capacidade de pensar e ver o que foi fundamental na nossa formação. O Sábado de Aleluia fica como uma lembrança da intolerância e da violência em nome de uma boa causa. A mesma intolerância que vemos todos os dias em nossa vida, a mesma dificuldade de perdoar e esquecer. A dificuldade de oferecer a outra face.
Feliz Páscoa e Boa Semana a todos!
Um comentário:
Olá Ricardo! Gostei de te acompanhar nesta memória. Quando eu era menina, a Páscoa também era muito tenebrosa. Lembro-me dos grandes silêncios apenas rasgados pelos requiens e marchas fúnebres que a rádio passava. E ainda era pior do que a tua porque depois não tinha a catarse da queima de Judas. A minha Páscoa culminava com o almoço de família e a liberdade de poder rir, cantar e dançar :)))))))
Um beijinho grande
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