sexta-feira, novembro 24, 2006

domingo, novembro 19, 2006

Boa Semana - Fel

Quando eu era criança não podiam matar galinha perto de mim. Nem galinha, nem qualquer outro bicho. Eu abria um berreiro, esperneava, um verdadeiro pandemônio. Mas a vida nos ensina, e logo vi que não adiantava todo aquele escarcéu, que os bichos nasciam, cresciam, e morriam – ou melhor, eram mortos.

Já maiorzinho ficava ajudando minha avó a matar galinha – vejam só a mudança. Íamos até o galinheiro com uma espiga de milho na mão, com um quit, quit e alguns grãos de milho a galinhada vinha em desabalada correria. Então ela me indicava “O frango pedrês” ou “Aquela galinha vermelha, isso, a de pescoço rajado”, e eu – zás – agarrava a vítima, que cacarejava e batia as asas desesperada, provocando um tremendo alvoroço entre as demais aves.

Feito isso nos dirigíamos para o tanque, que ficava nos fundo da casa, debaixo de três frondosas jabuticabeiras. Aí era com ela: pisava nas asas da galinha, e com um corte certeiro no cocoruto a pobrezinha não tinha outro remédio senão debater-se até morrer, esvaindo-se em sangue. Antes de morrer, a galinha dá três “estremeliques”, ou seja, três convulsões que indicam que a vida está deixando aquele pobre corpo emplumado. Nessa hora não é bom tocar o animal, melhor deixá-lo estrebuchar em paz.

Nesse momento sei que um monte de gente que me lê está escandalizada diante de tanta crueldade, mas acalmem-se. Esse método é dos mais “humanitários”, se assim se pode chamar algum jeito de matar. Saibam que galinha destroncada sofre muito mais, se debatendo por muito tempo antes de morrer...

Bom, morta a pobre vinha a água fervente que era despejada sobre seu corpo. Eu segurava a galinha pela ponta das asas, enquanto minha avó escaldava todas as penas. Então, com cuidado e rapidez, íamos tirando todas as penas, antes que esfriassem. Depois de depenada, com uma faca bem afiada era aberta e suas vísceras retiradas com muito jeito. Esse é o ponto em que eu queria chegar: a retirada do fel. Bem junto ao fígado existe uma pequena bolsinha, com um líquido verde-petróleo. Com a ponta da faca é preciso separá-la do fígado, tomando cuidado para que ela não rebente. Se isso acontecer toda a carne será perdida, amarga de não ter jeito.

Com o passar do tempo, aluno aplicado, eu já matava e limpava sozinho qualquer galinha ou frango. Até hoje, se preciso for, não me aperto. Mas não tenho gosto nisso; prefiro espiar os ovos que começam a picar e ver deles sair pintos, marrecos ou pavões, olhinhos assustados, descobrindo a vida. Aqui em casa também seguem o ciclo natural da vida: nascem, crescem e morrem, mas de velhice ou de doença. Nada de matar ninguém.

Muitos anos se passaram, e muitas coisas eu passei nessa vida. Em algumas delas não consegui evitar que o fel se derramasse e espalhasse, deixando seu gosto amargo por muito tempo no coração. Mas daqueles distantes domingos ficaram as lembranças e a saudade do tempo em que uma voz querida me alertava : "Cuidado com o fel, menino" .

Boa Semana!

domingo, novembro 12, 2006

Boa Semana - A orquídea de Tia Cida


Tia Cida era apaixonada por plantas, orquídeas em especial. Sua casa parecia um Jardim Botânico em miniatura. Há muitos anos, em Iguape, ela comprou de um caiçara uma orquídea linda, cheia de flores brancas e lilases (era uma Laelia purpurata).
Bem, ela voltou pra São Paulo, amarrou a orquídea numa árvore, como o homem recomendou, e esperou. Passaram-se um ano, dois, e nada de flor, até que um belo dia... a árvore caiu! Toca tirar a orquídea e plantar num xaxim. Mais anos de espera, e nada de flores. Então, já cansada de tanto esperar, ela jogou a orquídea debaixo do velho pé de amora, e deixou de ficar ansiosamente aguardando pelas flores que nunca vinham.

Num mês de novembro, depois de uma forte tempestade, metade da amoreira veio abaixo. Passada a chuva, lá vai tia Cida limpar aquela sujeirada de folhas e galhos. Nem bem começou a limpeza e seus gritos atraíram a família toda, até a vizinha do lado veio acudir. Cobra? Rato? O que foi, o que não foi, e então todos viram: eram cerca de 20 flores, grandes, recém desabrochadas. A orquídea se exibia, esplendorosa como uma rainha. Tia Cida parecia uma criança, rindo e chorando, de tamanha felicidade. Pois não é que a danada da orquídea não queria mimos? Queria mesmo era ficar ali, sossegada, sem ninguém pra incomodar.

Desde então ficava debaixo da amoreira, de onde só saía em novembro, cheia de flores, pra ficar na varanda, em lugar de destaque. Lembro das muitas vezes que fui ver essa orquídea, enquanto tomava café e comia bolo Napoleão (que saudade!).

Hoje tia Cida já não está mais entre nós, e durante sua longa doença todas as suas plantas, inclusive as orquídeas, tiveram fim. Quer dizer, quase todas.

Numa casa lá em Santana de Parnaíba, surgem no mês de novembro, no meio da folhagem de um fícus, grandes flores brancas e lilases. E se você ficar bem quietinho, ouvido atento, pode escutar uma voz vinda lá de longe, uma voz boa, interiorana e risonha, que grita: “São Pedro, corre ver a orquídea! A minha orquídea...

Boa semana!

domingo, novembro 05, 2006

Minha janela

Essa é a vista que tenho ao abrir minha janela de manhã.
As vantagens de se morar na roça...

Deleite das Feministas


Porcelana portuguesa, na família há meio século.

Você sabia?

Quando foi inaugurado, em 1891, havia pedágio no Viaduto do Chá. Fruto de uma sociedade anônima, os investidores precisavam obter retorno sobre o capital investido. Os paulistanos de então pagavam 60 réis para atravessá-lo e sentir a vertigem de olhar lá pra baixo, onde corria manso o Anhangabaú, por entre as plantações de chá da Baronesa de Itapetininga...

Você sabia?

Em 1930 Oswald de Andrade "casou-se" com Patrícia Galvão, a Pagu, defronte ao túmulo da família. Extremamente ligado à mãe, típico caso edipiano, Oswald queria a benção de Dona Ignez sobre essa nova união.

Boa Semana - Requiescat in Pace[1]

Quarta-feira foi dia de pagar uma série de promessas feitas sem o menor intuito de que fossem cumpridas. Sim, aquelas que adiamos para o dia de São Nunca. Ainda que no calendário religioso não exista dia consagrado ao santo tão invocado pelos caloteiros e demais biltres, dia 1º de novembro é o dia de Todos os Santos, numa tentativa de inclusão celestial daqueles que fazem parte do MSSC (Movimento dos Santos Sem Calendário). Portanto, daqui pra frente muito cuidado com as promessas que faz, e não invoque o santo em vão.

Nesses casos, o melhor é fazer como aquele Afonso Dias, bandeirante do século XVI, que em seu testamento deixa uma série de missas em prol de sua alma, e não esquece de encomendar “três missas a Santo Antonio e outra para o pai do Santo
[2]!!! Isso é que se chama apelo emocional: alguém já tinha pensado no pai de Santo Antonio? Muitos até devem achar que o santo nem pai tinha, coitado...

Bom,falando em mortos, não há como fugir ao dia consagrado àqueles que já deixaram a vida presente. Na televisão matérias sobre o movimento nos cemitérios, jornais e revistas com matérias sobre as curiosidades que existem nos campos santos da cidade. Foi então que decidi ciceronear a minha amiga
Kandoca para conhecer o mais antigo cemitério paulistano: o da Consolação. Fundado em 1858, fruto de uma generosa doação da Marquesa de Santos, ele tinha como intuito acabar com os enterros dentro das igrejas, costume muito antigo. Imaginem só: em três séculos de vida, os mortos da cidade espalhavam-se pelas igrejas existentes. Os enterros eram sempre feitos à noite; o caixão ou rede só servia para transportar o defunto, pois ele seria enterrado diretamente na terra. Para isso tiravam-se algumas tábuas do assoalho do tempo, cavava-se um pouco e lá ia o de cujus. Então socavam bem a terra com mão-de-pilão e tornavam a colocar o assoalho. Como naquela época não havia bancos nas igrejas, as mulheres assistiam às missas sentadas no chão. Imaginaram a encrenca? E o cheiro? Dos defuntos, não das mulheres.

Iam as coisas nesse pé, quando os vereadores da cidade decidiram abolir o velho e anti-higiênico costume. Largo do Arouche, morro do Chá, Luz, foram alguns os lugares sugeridos, mas venceu a idéia de um lugar bem afastado da cidade: o Caminho da Consolação, também conhecido por estrada de Sorocaba.

Eu poderia discorrer horas (ou caracteres) sobre o que vimos lá, contar histórias das famílias, descrever os mausoléus (o dos Matarazzo é o mais alto da América Latina, e ocupa área de 100 metros quadrados!), das obras de arte espalhadas.

Considerados pontos turísticos em diversos países, como Argentina e França, entre nós causa espanto a visita a um cemitério. Isso é coisa de góticos (que por sinal estavam por lá ontem, zanzando em pares ou sentados no memorial do Campos Salles) ou fanáticos da TFP
[3], que vão cultuar o túmulo do Plínio Correia de Oliveira.

Um túmulo destoa no meio de tanta grandiosidade: assemelha-se a uma urna, todo em granito negro, com letras metálicas: MONTEIRO LOBATO. Nas laterais, discretamente, vêem-se escritos na própria pedra mais alguns nomes: Purezinha, Edgar, Guilherme, Ruth e Martha
[4]. Não, não vou dizer que estão todos novamente reunidos ali. Não naquela caixa de pedra, onde só existem nomes e algumas flores que parentes e amigos deixaram. Na verdade eles estão longe dali, estão lá na fazenda do Buquira, no Vale do Paraíba, junto com a Tia Anastácia e seu marido Esaú, olhando o sol que se põe por detrás da Mantiqueira.

E para “matar” o assunto, deixo a frase sobre a curiosidade que tinha Lobato acerca da morte, para que cada um tire sua conclusão: “Será a morte vírgula, ponto e vírgula ou ponto final”?

Boa Semana!



[1] Do latim, “réquiem scat in pace”, significa Descanse em Paz. Sua abreviação- RIP – também era muito utilizada.
[2] Vida e Morte do Bandeirante. MACHADO, Alcântara. Martins, 1961
[3] Tradição, Família e Propriedade, organização de extrema direita, cujo fundador está enterrado no cemitério da Consolação.Todos os dias afluem seguidores de suas idéias para rezar e velar por seu túmulo.
[4] Purezinha, esposa de Lobato, faleceu em 1959. Seus filhos Edgar em 1942, Guilherme em 1939, Ruth em 1972 e Martha, a mais velha, em 2004.