domingo, junho 17, 2007

Do exercício da escrita...

Desde cedo estou a matutar no que escrever de Boa Semana. Os assuntos voejam pela minha cabeça como as borboletas que toda manhã namoram os hibiscos da cerca. Nada se assenta, nenhum tema começa a puxar um enredo atrás de si.

Descarto idéias, alguma pelo fato de a achar aborrecida para que lê, independente de ser agradável a quem a escreve; outra pelo fôlego exigido, e que hoje não é dos maiores.

Ocorre, porém, que a escrita é um exercício cuja prática leva à excelência. Portanto, nada mais coerente do que treinar a escrita, e existe um antigo método que consiste em desenvolver determinado tema de acordo com as informações que possuímos sobre ele, ainda que sejam poucas e de fraco embasamento. No bom e velho português: encher lingüiça.

Para fazer isso, é muito fácil: escolhe-se aleatoriamente um tema ou mesmo uma única palavra, e a partir dessa escolha inicia-se a escrita. Querem ver? Usando da metalinguagem, escreverei um texto sobre inspiração:

Sentado diante do computador busco um assunto que, ao final da leitura, deixe nos lábios de quem o lê um leve esboço de sorriso, forma quase imperceptível balançando a cabeça, como a dizer “Esse Ricardo...”, no doce tom de reprimenda de avó.

Lembro das doze musas gregas, e logo o pensamento viaja pelo simbolismo do número: os meses do ano, os signos do zodíaco, os apóstolos de Cristo... Mas no momento nenhuma delas tem espaço na agenda para atender aos meus apelos. Mitologia grega seria um bom tema, mas por onde começar? Falar dos principais deuses e de sua morada, o Monte Olimpo, além de contar para quem não sabe que esses seres divinos só se alimentavam de néctar e ambrosia? Ou contar sobre os Doze Trabalhos de Hércules (olha do doze novamente), aqueles que acompanhei na infância junto com a turma do Pica Pau Amarelo? Não, assunto por demais vasto e fascinante para uma despretensiosa crônica dominical.

Poderia descrever o fim de tarde que avisto pela porta entreaberta, do frio tímido que vem chegando, das nuvens arrepiadas que mancham o cansado azul de outono. Escuto a triste fogo-apagou que lamenta não sei o quê, mas de modo tão sincero que logo nos põe uma tristeza na alma. Sorte minha que o bom e velho casal de joões-de-barro surge a desfazer a melancolia da tarde com seu dueto alegre e estridente no jambeiro do quintal.

Tarde de domingo naturalmente preguiçosa, que não ajuda em inspirar alguém que deseja escrever uma simples crônica, sem maiores desejos que o de não desapontar os fiéis amigos que religiosamente vem ler minhas histórias. Não quero uma linda história de amor, com lances empolgantes que façam palpitar os corações, nem tenho para contar uma dor imensa das tragédias clássicas.

Simplesmente a vontade de escrever uma crônica num dia em que a inspiração tirou folga e foi visitar os parentes no interior de Minas Gerais.”


Viram só? Fiquei como galinha nova que procura o ninho para botar seu primeiro ovo: roda pr´aqui, pr´acolá, não vai nem vem. Mas isso não demanda talento nenhum, apenas o meu cinismo em abusar deslavadamente da boa vontade dos magníficos e benevolentes leitores que eu tenho...

Boa semana!

segunda-feira, junho 11, 2007

Mais uma história de amor...

Dia dos Namorados, vou contar uma história de amor que começou no distante ano de 1936.

Não quero definir aqui o que é amor, nem me deter na análise do que foram os longos anos de vida em comum. Acho que pra bom entendedor pingo é letra, e nesse caso um olhar disse tudo.

Pularei a parte de como eles se conheceram, como foi a luta pra superar a pobreza e atingir um padrão razoável de vida, que permitiu viagens por todo o Brasil, um ano e meio na Europa, carro do ano, uma belíssima casa, a primeira televisão do bairro. Mas nada disso vem ao caso.

Vamos saltar direto para 1989, cinqüenta e três anos depois daquele primeiro encontro. Ele está num quarto de hospital, vítima de derrames e espasmos vasculares consecutivos, já desenganado pelos médicos. Depois de passar a noite em claro, ela estava exausta e foi até à cantina do hospital tomar um copo de leite. Deixou o marido aos cuidados de uma sobrinha e de uma velha amiga.

Pouco depois dela ter saído do quarto, para surpresa das duas, ele abriu os olhos. Ficou por instantes olhando o teto. Súbito, inacreditavelmente começou a se soerguer na cama. Atarantadas, elas foram ampará-lo, colocando travesseiros sob suas costas para apoiá-lo. Foi então que seus olhos começaram a percorrer o quarto, como se buscasse alguma coisa. Nisso ambas entenderam o que ele queria e foram chamar aquela que ele procurava com suas últimas forças.

No corredor ouviu-se o barulho de um copo se espatifando e o som dos passos rápidos, daquelas pernas cansadas que corriam buscando forças numa longa história de vida. Prestassem mais atenção e se ouviria o bater descompassado de um coração...

Quando ela entrou no quarto, não disse uma palavra; simplesmente parou na porta, arfando. Ele continuava percorrendo o quarto com o olhar quando encontrou sua companheira de mais de meio século.

Fitou-a durante alguns segundos e então fechou os olhos. Definitivamente.

Celina e Francisco em Portugal, 1956

domingo, junho 10, 2007

Pisando em brasas...

Essa é uma história que meu padrinho me contava quando eu era criança, e por isso mesmo ficou gravada na memória, perdida no fundo de alguma das muitas gavetas que trago dentro da cachola... Era sobre um parente dele, o Tio Mocchi, e da promessa que ele fez pra São João.

Esse tio Mocchi veio pro Brasil ainda no século XIX, nas grandes levas de imigrantes que chegavam para substituir o braço negro nas lavouras de café em São Paulo. Não sei muito sobre o que fez, como enricou, pois isso nunca me foi contado; o que sei é que no período que interessa pro caso em questão, posterior à crise de 1929, ele já tinha comprado a fazenda em que trabalhou como colono. Casos como esse existiram diversos, de outrora ricos quatrocentões que perderam as fazendas em hipotecas ou as venderam para seus antigos empregados. Pois o tio Mocchi se afazendou na região da Araraquarense e continuou a plantar café.

Certo ano uma daquelas queimadas de agosto acabou por atingir a mata que existia por detrás do cafezal, lá nas divisas da fazenda. Juntando os camaradas, tio Mocchi foi preparar um aceiro e assim tentar preservar a plantação do incêndio. Ah, vocês não sabem o que é aceiro? Pobre gente da cidade...

Aceiro é o terreno que se limpa de mato para evitar que o fogo se alastre de um ponto para o outro. Na falta de palavra melhor, seria uma espécie de trincheira para barrar as chamas. Um bom aceiro deve ser feito contra o vento, caso contrário o vento carrega fagulhas e é trabalho perdido.

Depois deste breve interregno cultural, voltemos ao velho fazendeiro. No afã de apagar o incêndio que consumia grandes cambarás e centenárias perobas, tio Mocchi acabou por embrenhar-se mais que o seguro e recomendável na mata. Em poucos segundos, no tempo em que o demo esfrega um olho, ele viu-se preso num grande curral de fogo. Como sair dali? O fogo já roncava bravo nas touceira de bambu, galhos roídos pelo fogo despencavam das altas copas como tochas incendiárias, a fumaça queimava a garganta, o calor ficava insuportável.

Já se dando por perdido, só lhe restava mesmo apelar para o Céu. De mãos postas, pediu a São João que o livrasse daquela fogueira infernal. Em troca, todos os anos, pelo resto de seus dias, ele faria uma festa dia 24 de junho, em homenagem ao santo querido.

Sabe-se lá se por compaixão ou interesse na festa, o santo resolveu tirar o pobre daquela situação tão terrível. Não me perguntem como, por favor, que isso não sei. Poderia muito bem inventar uma bela potoca, com lances de suspense e emoção já que nenhum de vocês conhece o caso, mas recuso-me a fantasiar cenas em respeito à memória do pobre tio Mocchi.

Sei que ele saiu, cada qual imagine como se deu isso ao sabor de sua própria imaginação e preferência; saiu sim e cumpriu a promessa: todo ano naquele dia de junho convidava a vizinhança toda, dos fazendeiros aos colonos, e fazia aquela festança, com tudo a que o bom santo tinha direito.

Ora, devem estar vocês perguntando: fazer uma festa, ele que era fazendeiro, onde está o pitoresco disso? Festa basta ter dinheiro e gente animada que o caso se resolve. Onde o mistério da coisa, aquele que prendeu a atenção de cada um até este trecho, quando coisa mais interessante há nesse mundo de Nosso Senhor?

Acontece que naquele tempo em que estave preso no meio das chamas negociando com São João, diálogo esse que só podemos imaginar, o velho Mocchi recebeu uma graça especial: a de ser imune ao fogo!

Sim, meus senhores, isso mesmo! Ficou de corpo fechado pro fogo, graças à combinação com o santo primo de Jesus, que comia gafanhotos no deserto e chamava de serpentes aos que se diziam piedosos. São João é conhecido pelo pavio curto, e talvez por isso mesmo tio Mocchi tenha se lembrado dele. Afinal, São Francisco devia estar ocupado em salvar os pobres animais do fogo, enquanto Santo Antonio se via atarantado atendendo preces da esposas e noivas cujos homens se batiam contra o incêndio. Sobrou João, e esse não negou fogo.

Para provar que era verdadeira essa combinação com o santo, quando o velho carrilhão da sala de jantar dava as doze badaladas da noite, tio Mocchi mandava um caboclo desmanchar a enorme fogueira e espalhar a brasa aí num carreiro de uns cinco metros. Como no circo quando pára a música, todos ficavam atentos à cena: o velho descalçava as botas, tirava as meias, e murmurando suas orações, ia pisando naquele rubro braseiro sem mexer um músculo da face que não fossem os lábios rezando. Ia devagar, sem pressa alguma, até findar o caminho. Dizem que outras pessoas também caminhavam nas brasas como ele, iam até lá pagar promessas.

Si è vero? Não sei, vendo o peixe pelo preço que me passaram... Sobre a veracidade da história, passarei pisando em brasas, não como tio Mocchi, mas no modo figurado da coisa...
Entrou por uma porta, saiu pela outra, quem souber que conte outra...

Boa Semana!!!