domingo, dezembro 31, 2006

Boa Semana - Feliz 1957!!!

Esta é uma carta familiar, escrita em 08 de Janeiro de 1957... Se alguém tiver curiosidade de lê-la, então vai uma pequena explicação necessária ao melhor entendimento.

Olinda (minha tia-avó) escreve à irmã Celina e ao cunhado Francisco que estão em Portugal. Existem trechos em que outras pessoas mandam recados, mas tudo pela mão da mesma escrivã. E esta comenta sobre um cartão de Boas Festas recebido da dona Olinda Seura, do Rio de Janeiro, e copia a resposta que enviou no lugar da irmã.

Pela carta ficamos sabendo do calor que fazia nesse tempo, e do Natal chuvoso que tiveram (alguma semelhança com os dias de hoje?). Também descobrimos o valor de uma assinatura do Estadão, ou da mensalidade de uma caixa de Correio.

Note-se a boa escrita, apesar dela só possuir o quarto ano primário; permite-se até alguns floreios: "Eles não se esquecem dos bons amigos". Escreve melhor que muito marmanjo que anda por aí pelas faculdades...

Enfim, uma folha amarelada pelos tantos dias passados, mas que guarda um pedaço da história de uma família, um pedaço deles e de mim mesmo...

Boa Semana!

























Conto De Natal - Parte 2

Voltando à história da semana passada, na véspera de Natal depois de distribuir os presentes, chamei minha avó num canto e dei-lhe um envelope. Dentro havia um cartão com motivos natalinos e essas palavras:

VALE-PASSEIO
Vale um passeio com seu neto mais velho.

Claro que ela estranhou, ainda mais quando eu disse que seria um passeio no outro sábado, o último do ano. Mas o assunto morreu.

Na sexta-feira liguei para ela e confirmei o horário: às oito eu passaria para apanhá-la. Ela estava curiosa, mas eu despistei. No dia seguinte fomos para São Paulo, que estava deserta graças ao feriado de Reveillon. Marginal tranqüila, avenida do Estado sem trânsito, uma beleza.

Quando chegamos na rua da Cantareira e disse que iríamos ao Mercado, ela começou a rir aquele riso nervoso tão conhecido. Imagina, eu não iria levá-la até lá, eu estava maluco. Respondi que não, que eu estava muito lúcido, e que meu presente de Natal seria comprar tudo o que ela tivesse vontade. E queria reparar um erro de quarenta anos atrás...

Entramos, e a primeira compra que fiz foi de uma sacola de lona, daquelas antigonas. Nada de sacolinha plástica, as compras seriam a caráter, como manda o figurino. Sacolas plásticas são uma heresia no Mercado, deviam ser proibidas. Enfim...
Fomos entrando, e de repente estávamos no meio de um corredor lotado, cercados de queijos, bacalhau, vinhos, azeites, frutas secas, cada qual com seu aroma característico, e que junto formam a “sinfonia” do cheiro, se é que assim posso chamar. Foi então que ela apertou meu braço, e disse que precisava parar. Começou a chorar, e tentava segurar as lágrimas. Ficou vermelha, lábios cerrados, respiração entrecortada por soluços. Choramos os dois.

Na primeira parte do conto acabei por esquecer de um detalhe: no dia em que me contou a história, minha avó disse que, se um dia voltasse ao Mercado, queria encontrar alguém pobrezinho que quisesse comprar alguma coisa e não tivesse dinheiro. Pois bem: mal havia se recuperado da primeira emoção, enquanto eu pagava a primeira compra, vejo ela revirar a bolsa, aflita. Quando percebi, havia uma menina de seus dez anos, parada diante dela. Deus, acaso, coincidência - dêem o nome que preferir - só sei que colocou aquela menina pedindo um real pra comprar qualquer coisa.

A menina arregalou os olhos quando pegou a nota que lhe era estendida, e disse bem devagar, quase que separando as sílabas:
- Eu ganhei dez reais... Obrigado, tia!

Pronto, nova choradeira. Minha garganta chegava a doer, ardida, como se aquela emoção tivesse mãos a me sufocar... Sentimentos são coisas inexplicáveis. Pior foi ela depois se lamentando por não ter levado mais dinheiro, queria ter dado uma nota de cinqüenta. Argumentei que dez reais para aquela menina já a fizeram feliz, ela que nunca ganha mais que moedinhas. Curioso: durante o resto das compras não vimos mais a menina, tampouco alguém pedindo o que quer que fosse.

Continuamos nossas compras, ela a todo momento a dizer que não acreditava ter voltado ali depois de 42 anos.... Bacalhau, queijos, azeitonas, vinho, a sacola ia ficando cada vez mais pesada – eu já estava com os braços doendo. Mas valeu o passeio, tanto pelo lado emocional como pela beleza do Mercado, restaurado em todo seu esplendor, com a mesma cor de sua inauguração em 1933.

Ao sairmos de lá ela disse uma frase que ficou marcada: “Tem coisas que machucam o coração, mas machucam de felicidade”.

Disso tudo ficou-me na lembrança o cadinho de cheiros do Mercado, misturado ao gosto das lágrimas e de um sentimento que todos nós buscamos pela vida, sentimento tão fugaz e singelo chamado felicidade...

Que 2007 seja feito de Boas Semanas!!!

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Conto de Natal - Parte 1

Quando criança eu não entendia o porquê daquela rispidez e impaciência de minha avó para com meu avô. Não entendia porque ela, tão boa para mim, o tratava daquele jeito seco, logo ele que também era tão bom comigo. Não esqueço das notas de duzentos cruzeiros esverdeadas que ele me dava, com a efígie da Princesa Isabel, e que eram o valor exato de um doce de bar. Mas era assim, um pequeno mistério. Não conversavam, e toda vez que ele mansamente se dirigia a ela, era tratado com uma raiva e impaciência indisfarçáveis. Ele morreu quando eu tinha 12 anos de idade, e só muito tempo depois vim a saber os motivos que levaram minha avó a tratá-lo assim. Uma desses motivos foi o que narro agora, e que deu origem a este pequeno conto.

Era véspera de Natal e ele a convidou para sair; iria levá-la para conhecer o Mercado Central. Chegada a poucos anos de Portugal, ainda existiam muitos lugares da cidade que ela não conhecia. Saíram de Artur Alvim, na Zona Leste rumo ao centro da cidade. (Aqui abro um parêntese: nessa época eles estavam morando na casa dos pais dela, a situação era difícil: meu avô tinha sido vítima de um golpe, e da noite pro dia vira-se sem nada, com uma mão na frente e outra atrás, e quatro filhas pequenas para alimentar).

Quando entraram no Mercado, os olhos dela brilharam: aquele movimento todo, o bruááá dos vendedores e clientes, tantos odores, tantas cores. Era um delírio de fartura: bancas apinhadas de bacalhau, queijos, frutas, azeitonas, vinhos. Sentia-se como se estivesse num sonho, e não queria acordar. Ficaram percorrendo aqueles infindáveis corredores, cheios de gentes e sacolas. Senhoras elegantes acompanhadas de criadas examinavam atentamente uvas e cerejas, ou escolhiam a posta de bacalhau mais bonita.

Claro que desde o momento em que ali entrou seu pensamento foi para as filhas que a esperavam em casa: quanta coisa gostosa podia levar para as meninas, elas bem que mereciam. Afinal, quanta vez lhes dera água com açúcar para enganar o estômago? Mal podia esperar para que ele decidisse parar numa banca e começar as compras. Sim, porque depois daqueles tempos difíceis as coisas haviam melhorado: ele tinha montado e vendido um bar, estava com dinheiro no bolso. Claro que não permitia extravagâncias, era o capital com que iria começar outro negócio, mas não fariam falta alguns cruzeiros.

Depois de andar por um bom tempo, ele disse que estava na hora de ir embora. Ela estranhou, afinal não haviam comprado nada ainda. Mas quando disse isso a ele, pronto, o mundo veio abaixo: estava louca, queria gastar dinheiro? Ele precisava comprar outro bar, não podia gastar com besteiras. Ela ficou tão atônita que nem conseguia raciocinar direito. Quando se deu conta da situação, ainda balbuciou: “Mas Zé, pelo menos um pedaço de queijo pras meninas”. Ele se enfureceu ainda mais: pegou-a pelo braço e foram em direção do ponto de ônibus. Ela desatou a chorar, e assim continuou por todo o trajeto, até chegar em casa. E não parou de chorar por toda a noite. Minha mãe também me contou essa história, e disse que esse foi o Natal mais triste de suas vidas: ela e as irmãs ouvindo o choro da mãe trancada no quarto, e o pai já “tocado” na sala, reclamando da vida.

Essa história eu ouvi de minha avó muitos anos depois, num dia que a levei até o Centro para conhecer a igreja do Carmo. Ficou-me na alma uma angústia, um nó na garganta, uma raiva surda contra meu avô, a mesma que sinto agora ao escrever essas linhas. Não sei o que o motivou, se sadismo, maldade, não sei. Talvez o tenha feito sem pensar, sem prever o que iria acontecer, o que é difícil de acreditar: levar a mulher - que tirava comida da boca para dar as filhas - na véspera de Natal ao Mercadão e sair de mãos vazias? Por que teria feito isso? Logo ele, que sempre me deu dinheiro para os doces...

Mas de nada adiantam esses sentimentos ruins, isso foi há tanto tempo...Porém, fiquei lembrando dessa história essa semana inteira, e uma idéia me veio à cabeça...


Aguardem até a próxima semana o desfecho desta história...

Enquanto isso,

Boa Semana e Feliz Natal!!!

domingo, dezembro 17, 2006

Yo no creo en las brujas...

Todo dia 17 de dezembro meus pais comemoram aniversário de namoro. Não sei ao certo quantos são, mas só de casamento já se vão 34. Enfim, sempre nesse dia invariavelmente meu pai assalta o jardim e adorna algum recipiente – vaso, copo, chaleira, o que estiver à mão – com algum, digamos, insólito arranjo floral. Enfim, o que conta são as intenções, não é verdade?

Tantos anos juntos e se dão bem que até causa espanto. Têm suas brigas, sim, mas hoje em dia cada vez mais raras. Dependem um do outro, gostam de conviver, de conversar, de fazer coisas juntos. Mas isso não impede que brinquemos que, se minha mãe morrer, ele precisa de uma mulher para ajudá-lo a se vestir para o velório...

Conto nos dedos os eventos em que um dos dois foi sozinho. A primeira vez, inclusive, causou espanto e comoção na família: haviam se separado? A Ivone sozinha, cadê o Silvio? Foi um deus-nos-acuda!

Reza a crendice popular que quanto mais tempo passam juntas, mais as pessoas se tornam semelhantes umas com as outras. Isso ainda não aconteceu com eles, mas têm uma união que impressiona. Para ilustrar isso, conto o que ouvi, acredite quem quiser. Vendo o peixe ao preço que comprei...

Meu pai acordou contando do sonho que teve: que minha mãe pedia sem parar umas garrafinhas de Coca-Cola, e tomava uma, duas cinco, dez. Na verdade o que havia lá dentro era cuba-libre, o único drink que meu pai sabe preparar – e faz questão de oferecer a qualquer visita aqui em casa. Mas ele sonhou que ela tomava diversas garrafas de cuba, sem nunca se saciar.

Pois bem, nessa manhã minha mãe acorda com a cabeça estourando, estômago embrulhado, como se tivesse tomado um porre. Disse que não sabia o motivo de tal mal-estar, até meu pai contar sobre o sonho que tivera.

Acho que a isso é que se dá o nome de cumplicidade...

Boa Semana - O encontro

Já escrevi sobre amizade muitas vezes, e assim continuarei fazendo até depois de minha morte: penso em arranjar um médium que continue a escrever minhas besteiras post mortem.

Bom, ontem fui até uma cachaçaria em São Paulo para encontrar-me com um grupo de amigos. Mas não quaisquer amigos: somos em sete, numa amizade que gira em torno de 20 anos, dos bons tempos da escola, nosso velho e bom Tamandaré...

Durante o ano nos encontramos diversas vezes, mas esse encontro antes do Natal já se tornou tradição. Nem sempre cumprida, diga-se de passagem....

De todos, apenas um não compareceu, ás voltas com o filho recém-nascido. Plenamente desculpável, Alex, tomei uma cerveja por você e pelo pequeno que vai perpetuar nossas histórias através do tempo...

Como sempre eu fui o primeiro a chegar (e deliberadamente cheguei com meia hora de atraso, mas mesmo assim não adiantou), e pra não ficar à toa, fiquei paquerando a bela loira que era umas das hostess da casa. Que me ignorou olimpicamente; uma pena pra ela, coitada...

Finalmente começaram a chegar, e tomamos a nossa mesa. O que ali se passou nem adianta contar, tantas risadas, tantos casos do passado que vêm à baila. São sempre assim esses encontros, repetimos velhas histórias, tantas vezes ouvidas, mas que ainda assim fazem rir e servem de motivo para “arrancarmos o couro” do envolvido. Todos temos “a” história, aquela em que fomos protagonistas e que se destaca entre todas as outras.

Hoje o grupo aumentou: novos amigos, esposas, namoradas, filhos, mas os sete continuam os mesmos: eternos moleques, mal disfarçados pelos abdomens proeminentes ou pelos cabelos grisalhos.

Cada um luta pela sua vida, uns mais sossegados, outros na busca mais inglória, mas quando nos encontramos o mundo pára, só existimos nós e nossas histórias.

Nunca passou a menor sombra de desentendimento entre nós. Nenhuma mulher, dinheiro ou opinião nos fez romper. Brigar, brigamos muito, chamamos nomes uns aos outros. Sei que posso pegar qualquer um deles e passar-lhe uma descompostura caso tenha feito alguma besteira grossa, e eles sabem – e fazem – o mesmo comigo.

Assim como sei que a qualquer hora da madrugada, e em qualquer lugar em que me encontre, posso ligar para um deles e pedir socorro. É uma espécie de Máfia, mas sem pacto de sangue ou bobagens parecidas. O que nos une é um profundo e inabalável sentimento de comunhão, de afeto, de fraternidade.

Muita gente já escreveu sobre a amizade, mas creio que poucas, como eu, tiveram a grande ventura de viver tudo aquilo que as palavras descrevem.

Que todos vocês tenham a felicidade de ter amigos como esses e outros com que a vida me presenteou.

Boa Semana!

sábado, dezembro 02, 2006

Boa Semana - Vida

Para Regina e Pedro
Semana passada fui ver a montagem de “O Avarento”, com Paulo Autran no papel principal. Já havia assistido outras peças com ele, sem falar de seu trabalho na TV e no cinema, mas sempre é uma agradável surpresa vê-lo em ação. Aos 83 anos ele encarna com desenvoltura o velho pão-duro que só se preocupa em amealhar dinheiro e defender sua fortuna de tudo e de todos.

O peso dos anos já se faz sentir, mas o que seria um empecilho só torna mais verossímel sua atuação.Com um ar gaiato ele consegue imprimir a dose certa de humor num personagem com atitudes tão mesquinhas. O final do espetáculo não nos deixa refletir com a devida atenção sobre seu significado, tamanha a emoção de ver aquele senhor de cabelos brancos diante de nós, assim tão perto.

Depois dessa experiência em que fica provado que a idade cronológica pesa sim, mas sobretudo naqueles que se entregam aos seus limites e obstáculos, temos a comemoração dos 90 anos da Madrinha Celina.

Ela convidou a família e amigos para um almoço em uma churrascaria, e foi ali que ela recebeu aquele que – segundo suas próprias palavras – foi o melhor presente de sua vida.

Meus primos Pedro e Regina fizeram uma belíssima e emocionante apresentação em DVD com centenas de imagens da aniversariante em diversas fases de sua vida. Durante quinze minutos, à meia-luz, era possível ouvir exclamações diversas:

- Olha eu pequenininho!

-Nossa, uma foto do meu casamento!

- A tia Generosa!

Enquanto isso, lágrimas corriam nos olhos de quase todos... Mas muitos risos também, palmas, assobios ao surgirem fotos na praia...

Desde a semana passada eu estou tentando escrever sobre essa festa, expressar toda a emoção que vivemos naquele dia, mas não consigo. O desejo de escrever algo memorável, que recebesse elogios de todos, não consigo realizar.Parece-me que foi algo tão bonito, que deu tão certo, que as palavras não conseguem descrever.

Talvez o que melhor exprima o que eu queria escrever sejam as palavras que ouvi dela no dia seguinte:

- Estou feliz, feliz, feliz. Vocês deram o melhor presente da minha vida. Valeu a pena ter vivido tanto.

Espero que um dia possamos repetir essas palavras, com a mesma emoção...

Boa Semana!

PS: "O Avarento" volta em cartaz em janeiro, assistam.

sexta-feira, novembro 24, 2006

domingo, novembro 19, 2006

Boa Semana - Fel

Quando eu era criança não podiam matar galinha perto de mim. Nem galinha, nem qualquer outro bicho. Eu abria um berreiro, esperneava, um verdadeiro pandemônio. Mas a vida nos ensina, e logo vi que não adiantava todo aquele escarcéu, que os bichos nasciam, cresciam, e morriam – ou melhor, eram mortos.

Já maiorzinho ficava ajudando minha avó a matar galinha – vejam só a mudança. Íamos até o galinheiro com uma espiga de milho na mão, com um quit, quit e alguns grãos de milho a galinhada vinha em desabalada correria. Então ela me indicava “O frango pedrês” ou “Aquela galinha vermelha, isso, a de pescoço rajado”, e eu – zás – agarrava a vítima, que cacarejava e batia as asas desesperada, provocando um tremendo alvoroço entre as demais aves.

Feito isso nos dirigíamos para o tanque, que ficava nos fundo da casa, debaixo de três frondosas jabuticabeiras. Aí era com ela: pisava nas asas da galinha, e com um corte certeiro no cocoruto a pobrezinha não tinha outro remédio senão debater-se até morrer, esvaindo-se em sangue. Antes de morrer, a galinha dá três “estremeliques”, ou seja, três convulsões que indicam que a vida está deixando aquele pobre corpo emplumado. Nessa hora não é bom tocar o animal, melhor deixá-lo estrebuchar em paz.

Nesse momento sei que um monte de gente que me lê está escandalizada diante de tanta crueldade, mas acalmem-se. Esse método é dos mais “humanitários”, se assim se pode chamar algum jeito de matar. Saibam que galinha destroncada sofre muito mais, se debatendo por muito tempo antes de morrer...

Bom, morta a pobre vinha a água fervente que era despejada sobre seu corpo. Eu segurava a galinha pela ponta das asas, enquanto minha avó escaldava todas as penas. Então, com cuidado e rapidez, íamos tirando todas as penas, antes que esfriassem. Depois de depenada, com uma faca bem afiada era aberta e suas vísceras retiradas com muito jeito. Esse é o ponto em que eu queria chegar: a retirada do fel. Bem junto ao fígado existe uma pequena bolsinha, com um líquido verde-petróleo. Com a ponta da faca é preciso separá-la do fígado, tomando cuidado para que ela não rebente. Se isso acontecer toda a carne será perdida, amarga de não ter jeito.

Com o passar do tempo, aluno aplicado, eu já matava e limpava sozinho qualquer galinha ou frango. Até hoje, se preciso for, não me aperto. Mas não tenho gosto nisso; prefiro espiar os ovos que começam a picar e ver deles sair pintos, marrecos ou pavões, olhinhos assustados, descobrindo a vida. Aqui em casa também seguem o ciclo natural da vida: nascem, crescem e morrem, mas de velhice ou de doença. Nada de matar ninguém.

Muitos anos se passaram, e muitas coisas eu passei nessa vida. Em algumas delas não consegui evitar que o fel se derramasse e espalhasse, deixando seu gosto amargo por muito tempo no coração. Mas daqueles distantes domingos ficaram as lembranças e a saudade do tempo em que uma voz querida me alertava : "Cuidado com o fel, menino" .

Boa Semana!

domingo, novembro 12, 2006

Boa Semana - A orquídea de Tia Cida


Tia Cida era apaixonada por plantas, orquídeas em especial. Sua casa parecia um Jardim Botânico em miniatura. Há muitos anos, em Iguape, ela comprou de um caiçara uma orquídea linda, cheia de flores brancas e lilases (era uma Laelia purpurata).
Bem, ela voltou pra São Paulo, amarrou a orquídea numa árvore, como o homem recomendou, e esperou. Passaram-se um ano, dois, e nada de flor, até que um belo dia... a árvore caiu! Toca tirar a orquídea e plantar num xaxim. Mais anos de espera, e nada de flores. Então, já cansada de tanto esperar, ela jogou a orquídea debaixo do velho pé de amora, e deixou de ficar ansiosamente aguardando pelas flores que nunca vinham.

Num mês de novembro, depois de uma forte tempestade, metade da amoreira veio abaixo. Passada a chuva, lá vai tia Cida limpar aquela sujeirada de folhas e galhos. Nem bem começou a limpeza e seus gritos atraíram a família toda, até a vizinha do lado veio acudir. Cobra? Rato? O que foi, o que não foi, e então todos viram: eram cerca de 20 flores, grandes, recém desabrochadas. A orquídea se exibia, esplendorosa como uma rainha. Tia Cida parecia uma criança, rindo e chorando, de tamanha felicidade. Pois não é que a danada da orquídea não queria mimos? Queria mesmo era ficar ali, sossegada, sem ninguém pra incomodar.

Desde então ficava debaixo da amoreira, de onde só saía em novembro, cheia de flores, pra ficar na varanda, em lugar de destaque. Lembro das muitas vezes que fui ver essa orquídea, enquanto tomava café e comia bolo Napoleão (que saudade!).

Hoje tia Cida já não está mais entre nós, e durante sua longa doença todas as suas plantas, inclusive as orquídeas, tiveram fim. Quer dizer, quase todas.

Numa casa lá em Santana de Parnaíba, surgem no mês de novembro, no meio da folhagem de um fícus, grandes flores brancas e lilases. E se você ficar bem quietinho, ouvido atento, pode escutar uma voz vinda lá de longe, uma voz boa, interiorana e risonha, que grita: “São Pedro, corre ver a orquídea! A minha orquídea...

Boa semana!

domingo, novembro 05, 2006

Minha janela

Essa é a vista que tenho ao abrir minha janela de manhã.
As vantagens de se morar na roça...

Deleite das Feministas


Porcelana portuguesa, na família há meio século.

Você sabia?

Quando foi inaugurado, em 1891, havia pedágio no Viaduto do Chá. Fruto de uma sociedade anônima, os investidores precisavam obter retorno sobre o capital investido. Os paulistanos de então pagavam 60 réis para atravessá-lo e sentir a vertigem de olhar lá pra baixo, onde corria manso o Anhangabaú, por entre as plantações de chá da Baronesa de Itapetininga...

Você sabia?

Em 1930 Oswald de Andrade "casou-se" com Patrícia Galvão, a Pagu, defronte ao túmulo da família. Extremamente ligado à mãe, típico caso edipiano, Oswald queria a benção de Dona Ignez sobre essa nova união.

Boa Semana - Requiescat in Pace[1]

Quarta-feira foi dia de pagar uma série de promessas feitas sem o menor intuito de que fossem cumpridas. Sim, aquelas que adiamos para o dia de São Nunca. Ainda que no calendário religioso não exista dia consagrado ao santo tão invocado pelos caloteiros e demais biltres, dia 1º de novembro é o dia de Todos os Santos, numa tentativa de inclusão celestial daqueles que fazem parte do MSSC (Movimento dos Santos Sem Calendário). Portanto, daqui pra frente muito cuidado com as promessas que faz, e não invoque o santo em vão.

Nesses casos, o melhor é fazer como aquele Afonso Dias, bandeirante do século XVI, que em seu testamento deixa uma série de missas em prol de sua alma, e não esquece de encomendar “três missas a Santo Antonio e outra para o pai do Santo
[2]!!! Isso é que se chama apelo emocional: alguém já tinha pensado no pai de Santo Antonio? Muitos até devem achar que o santo nem pai tinha, coitado...

Bom,falando em mortos, não há como fugir ao dia consagrado àqueles que já deixaram a vida presente. Na televisão matérias sobre o movimento nos cemitérios, jornais e revistas com matérias sobre as curiosidades que existem nos campos santos da cidade. Foi então que decidi ciceronear a minha amiga
Kandoca para conhecer o mais antigo cemitério paulistano: o da Consolação. Fundado em 1858, fruto de uma generosa doação da Marquesa de Santos, ele tinha como intuito acabar com os enterros dentro das igrejas, costume muito antigo. Imaginem só: em três séculos de vida, os mortos da cidade espalhavam-se pelas igrejas existentes. Os enterros eram sempre feitos à noite; o caixão ou rede só servia para transportar o defunto, pois ele seria enterrado diretamente na terra. Para isso tiravam-se algumas tábuas do assoalho do tempo, cavava-se um pouco e lá ia o de cujus. Então socavam bem a terra com mão-de-pilão e tornavam a colocar o assoalho. Como naquela época não havia bancos nas igrejas, as mulheres assistiam às missas sentadas no chão. Imaginaram a encrenca? E o cheiro? Dos defuntos, não das mulheres.

Iam as coisas nesse pé, quando os vereadores da cidade decidiram abolir o velho e anti-higiênico costume. Largo do Arouche, morro do Chá, Luz, foram alguns os lugares sugeridos, mas venceu a idéia de um lugar bem afastado da cidade: o Caminho da Consolação, também conhecido por estrada de Sorocaba.

Eu poderia discorrer horas (ou caracteres) sobre o que vimos lá, contar histórias das famílias, descrever os mausoléus (o dos Matarazzo é o mais alto da América Latina, e ocupa área de 100 metros quadrados!), das obras de arte espalhadas.

Considerados pontos turísticos em diversos países, como Argentina e França, entre nós causa espanto a visita a um cemitério. Isso é coisa de góticos (que por sinal estavam por lá ontem, zanzando em pares ou sentados no memorial do Campos Salles) ou fanáticos da TFP
[3], que vão cultuar o túmulo do Plínio Correia de Oliveira.

Um túmulo destoa no meio de tanta grandiosidade: assemelha-se a uma urna, todo em granito negro, com letras metálicas: MONTEIRO LOBATO. Nas laterais, discretamente, vêem-se escritos na própria pedra mais alguns nomes: Purezinha, Edgar, Guilherme, Ruth e Martha
[4]. Não, não vou dizer que estão todos novamente reunidos ali. Não naquela caixa de pedra, onde só existem nomes e algumas flores que parentes e amigos deixaram. Na verdade eles estão longe dali, estão lá na fazenda do Buquira, no Vale do Paraíba, junto com a Tia Anastácia e seu marido Esaú, olhando o sol que se põe por detrás da Mantiqueira.

E para “matar” o assunto, deixo a frase sobre a curiosidade que tinha Lobato acerca da morte, para que cada um tire sua conclusão: “Será a morte vírgula, ponto e vírgula ou ponto final”?

Boa Semana!



[1] Do latim, “réquiem scat in pace”, significa Descanse em Paz. Sua abreviação- RIP – também era muito utilizada.
[2] Vida e Morte do Bandeirante. MACHADO, Alcântara. Martins, 1961
[3] Tradição, Família e Propriedade, organização de extrema direita, cujo fundador está enterrado no cemitério da Consolação.Todos os dias afluem seguidores de suas idéias para rezar e velar por seu túmulo.
[4] Purezinha, esposa de Lobato, faleceu em 1959. Seus filhos Edgar em 1942, Guilherme em 1939, Ruth em 1972 e Martha, a mais velha, em 2004.

domingo, outubro 29, 2006

As pessoas de minha vida

Recentemente foi veiculado um comercial onde um camarada aparentando seus trinta anos vem andando pela rua acompanhado por uma fauna variada de personagens. A todo instante ele é abordado por alguém: crianças com uniforme escolar, uma babá, um mágico, palhaços, um grupo de meninos com uma bola de futebol, o Fofão, duas coelhinhas da Playboy, o boneco da Michelin, e por aí vai. Num determinando momento, ele pára na esquina, diante de um belo automóvel. Então se volta para trás, e não vê mais ninguém. Surge o slogan da campanha: “Sua vida trouxe você até aqui”, e dizem o nome do novo carro que vai levá-lo daqui por diante.

Pois bem, esse comercial ficou martelando em minha cabeça, e vê-lo numa revista só fez por deixá-lo mais vivo e aumentar seu encanto para mim. No domingo passado, enquanto atinava como usá-lo no Boa Semana, acabei tendo a atenção voltada para um caso curioso que passou na TV.

Um norte-americano de 55 anos descobriu que tinha três tumores malignos no cérebro, e sua expectativa de vida era de alguns meses. A princípio desesperado, ficou pensando no que seria de sua filha, uma jovem adolescente. Começou a rever seus passos, e deparou-se lembrando das pessoas que haviam passado por sua vida. Surpreendeu-se ao se deparar com o número mil. Mas não parou por aí.

Através de amigos em comum, pesquisas em listas telefônicas, consultas a antigos colégios e empresas, começou a buscar essas pessoas. Ligava para elas marcando um encontro no Central Park e ali dizia que vinha para se despedir, mas antes queria agradecer a importância daquela pessoa em determinado momento de sua vida.

Começou a escrever um diário narrando esses encontros, diário que seria a sua herança para a filha. O último capítulo, pediu à esposa que o escrevesse. O diário acabou virando livro (depois coloco o nome, prometo).

Ora, juntei o comercial do carro com a história do americano, e aí tinha os ingredientes para escrever a crônica dominical. Mas texto é que nem massa de pão caseiro: se o tempo não estiver bom, não cresce. Foi o que aconteceu: a idéia embatumou, para usar o vocabulário de minha mãe ao deparar-se com aquela massa pesada.

Passei toda a semana com isso na cabeça, e prometi a mim mesmo que hoje escreveria. Pois aí está. Não coloco nenhum comentário ou “moral da história”. Apenas conto o que vi e ouvi, pra cada um pensar. Não vou dizer que já comecei a revirar os arquivos da memória em busca de tantas e tantas pessoas que passaram por minha vida, e que são importantes. Sim, ainda são, pois se não estão mais presentes fisicamente, de alguma forma elas permanecem em mim, ainda que no subconsciente.

Deparei-me com lembranças curiosas: a dona Vicentina, que fazia um inesquecível doce de casca de laranja seleta, ou do João do Saco, andarilho que metia medo em nós, crianças, mas que era tão inofensivo. Ou do velho Angel, amigo de meu avô, sempre de chapéu preto e guarda-chuva. E aquela menina loira, filha do verdureiro, cujo nome não me lembro, mas que tanto amei nos meus 13 anos... Tantas pessoas, tantas histórias...

Pensem vocês nas pessoas que passaram em suas vidas, e prestem atenção no seguinte: aquelas que nos parecem hoje menos importantes também deixaram sua marcas.

Boa Semana!!!

segunda-feira, outubro 23, 2006

Do contra

Nunca gostei do in, nem de seu irmão caçula, o im. Por quê? Ora, eles são dois desmancha prazeres, dois pessimistas que vivem entortando tudo em seu caminho. Como assim, não entendeu?

Ora, não bastasse existir a tristeza como contraponto da felicidade, lá vem o abelhudo do in, e cria a infelicidade. Ciumento, seu irmão aparece e o que era possível, deixa de ser, tornando-se impossível.

São dois mal humorados, que vivem atrapalhando e invertendo tudo. O certo perde a certeza, o puro ganha máculas, o perfeito não consegue cumprir sua utopia. São a encarnação do espírito de negação.

Não bastassem os dois irmãos, ainda surgem alguns primos, como o des. E sempre aparece para estragar o encontro dos amantes, o enlace de um casal, a harmonia de um lar. A graça torna-se trágica ao lado dele, a esperança perde seu brilho, até o que havia se agrupado acaba por se dispersar.

Sim, alguém me contesta e prova que nem só de sombras vivem esses sujeitos. Imortal, imaculado, imorredouro, imperecível, inesquecível, descoberto. Certo, mas nada que os redima de tantos desatinos. Incansáveis, seguem sempre em sua tarefa inglória de impedir ou desbotar o lado bom das coisas.

Não gosto deles, são antíteses de si mesmos, capazes de reverter a situação ao seu bel-prazer. Não bastassem todos os contrários que existem no mundo, ainda invertem o sentido das coisas e das gentes. São como pequenos deuses pagãos, que se divertem em criar e desfazer, em rir das mutações e contrastes que criam.

São como tantas pessoas, que passam a vida a negar o que há de bom, o que há de belo. São seres que nunca conseguem olhar alguém ou alguma coisa sem a sombra da inveja, do rancor, do ódio. Incapazes de criar por si sós, vivem à sombra dos outros, à espera da oportunidade de agarrá-lo e destruí-lo, que não é outra coisa senão destruir transformar o que era feliz em um pobre infeliz.

domingo, outubro 15, 2006

Boa Semana - Meu ideal

Enquanto escrevo penso na reação que terão os leitores diante de minhas palavras. Pelo fato de conhecer a maioria dos três ou quatro abnegados que me lêem, é impossível não pensar no que eles vão achar sobre este ou aquele assunto. Muitas vezes mudo uma frase, uma idéia, uma palavra que seja, para evitar ferir suscetibilidades. Noutras escrevo algo que se assemelha àquela piscadela de cumplicidade que temos com algumas pessoas, algo como um código que vai passar despercebido pelo restante dos leitores.

Em que pese a vaidade que move toda pessoa que se dispõe a sentar diante de um computador e escrever, existe também a preocupação em agradar, preocupação que se divide entre o que se escreve e para quem se escreve. Muitas vezes deixo de publicar um texto que me encanta, pois acho que não encontrarei eco em quem o lê. O contrário também acontece corriqueiramente: um texto escrito sem maiores expectativas agrada em cheio, recebo elogios e parabéns.

Tenho uma preocupação constante: mesclar poesia e simplicidade. Isso não é tarefa das mais fáceis, poucos os escritores que conseguiram realizá-la com êxito. Um dos mais felizes nesse ponto, sem dúvida nenhuma, foi Rubem Braga
[1]. Existem crônicas antológicas desse mestre, e vale a pena vocês lerem mais sobre ele. Uma delas, Meu Ideal, em que deseja escrever uma história que fizesse feliz certa moça que vive triste e solitária, é uma das mais belas páginas de lirismo de nossa literatura.

A crônica não é um gênero maior, já escreveu Antonio Candido
[2]. “Graças a Deus”, completa o crítico, “porque sendo assim ela fica perto de nós. (...) Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição”.

Parafraseando o velho Braga, meu ideal seria escrever algo que fosse real ainda que tratando do abstrato, que pudesse mexer com o coração de quem lê, e que nesse momento sentisse que por trás de toda palavra existe alguém de carne e osso, que colocou o cérebro pra funcionar em busca do que escrever. E cujos dedos bateram no teclado juntando as letras que dessem forma a esses pensamentos voejantes.

O desejo do escritor é durar mais que os breves minutos da leitura. É deixar de ser capítulo de novela para se tornar parte do mundo real de quem lê. Utopia? Talvez. Mas nada que não valha a pena buscar.

Boa Semana!



[1] Escritor brasileiro (Cachoeiro do Itapemirim, ES, 1913 – Rio de Janeiro, RJ, 1990), considerado por muitos o maior cronista brasileiro desde Machado de Assis. http://www.releituras.com/rubembraga_bio.asp

[2] Crítico literário e sociólogo (Rio de Janeiro, RJ, 1918). http://www.pacc.ufrj.br/literaria/candidocronologia.html

Entrementes

Meu avô era daqueles portugueses antigos que quebra, mas não torce, e de poucas palavras. Na minha infância, sua presença sempre inspirou medo, medo de seus gritos tonitruantes, de seu olhar severo, sempre pronto a repreender. Com o passar dos anos nossas relações se estreitaram, e muitas vezes ouvi histórias de seu tempo de moço, das dificuldades por que passou. Algumas ficaram marcadas com maior relevo em minha lembrança. Uma era a de seu avô (meu trisavô!), um pobre lavrador chamado Teodósio...

Pois na segunda metade do século XIX a vida rural em Portugal ainda se assemelhava ao período feudal, quando camponeses trabalhavam quase que por um prato de comida. A fome rondava e as doenças, como tuberculose e sífilis, ceifavam vidas no atacado ou deixavam apenas sombras humanas vegetando uma existência miserável.

Esse meu trisavô Teodósio era mais um nessa massa anônima. Trabalhava numa quinta – que é o nome que os sítios têm em Portugal –, e dava-se por feliz por ter o que comer em troca de seu suor. Mas diz o povo que a necessidade é mãe da criatividade, e esse meu antepassado é prova viva, quer dizer, morta, do provérbio. Ah, vocês entenderam...

Num dia de muita chuva, quando parecia impossível trabalhar na lavoura, ele estava num canto da cozinha, aquentando perto do fogão à lenha. O beiral da casa chorava suas lágrimas, esburacando o chão em pequenas poças. Surge o patrão, corre os olhos pela paisagem, olha o céu, e declara:

- É, Teodósio, acho que hoje não podes trabalhar, pelo jeito a chuva não cessa. Melhor ires embora.

Ora, se ele se fosse perdia o almoço, e era pr´amor da comida que ali estava. Não podia ir-se embora.

- Veja lá, meu senhor, parece que clareia pros lados das Matas. Vou aqui a cortar uns cavacos pra o fogo, entrementes o tempo melhora...

O patrão torcia o nariz, mas não respondia, e lá ficava o ladino Teodósio, cavaqueando. Depois de almoçar, esticava os braços; aí se chegava junto à porta, olhava o céu e dizia candidamente:

- Pois acho que meu senhor tem razão: hoje o dia está perdido. Mas de hora em hora, Deus melhora. Até amanhã!

E lá se ia o bom Teodósio, sem nunca suspeitar que mais de um século depois alguém ainda se lembraria de seu nome: Teodósio Pinto Ferreira. Dele não ficou nenhum retrato, nenhum documento, nada além dessa história. Aliás, a única.

Entrementes, a vida segue...

domingo, outubro 08, 2006

Boa Semana - Ereções

Na feira de sábado estava a discussão armada em torno da barraca do Toshio. Seu Cármine, apesar de italiano, envolvia-se na política brasileira como se fosse o mais ferrenho dos patriotas.

- que Lula, nem metso Lula. Agora ele já viu que não ganhar, vai voltar pra terra dele com rabo entre as pernas. Baiano maledetto!

- Epa!!! Num vem cum esse papo de baiano, não, seu Carmi. Ele é pernambucano. Baiano sou eu, e com mutcho órgulho, visse?, respondeu nervoso o Josimar, baiano do Recôncavo, como gostava de dizer.

- Má vá, são tutti cabeça chata! Pra mim, passou de Minas, é tudo baiano.

Enquanto discutiam sobre gregos e baianos, na esquina surgia o vulto vagaroso de seu Fonseca, dobrado sobre sua bengala. Beirando os noventa anos, tinha uma voz anasalada, semelhante a uma buzina daquelas usadas pelo vendedor de algodão doce. Seus olhos, ainda que auxiliados pelas grossas lentes dos óculos, não conseguiam distinguir os que estavam na banca do Toshio, mas imaginava quem iria encontrar: o Cármine, o Josimar, o Vicentinho da Nena, o Bola e, claro, o Toshio. Continuou em seu vagaroso caminhar, sem saber que os companheiros já o tinham avistado:

- Lá vem seu Fonseca, coitado, disse o Vicentinho da Nena.

Era o mais novo da turma, mal entrado nos quarenta. Vivia de pequenos expedientes, um bico aqui, outro ali, mas quem o sustentava mesmo era a mãe, a Dona Nena. Era uma velha de uns setenta anos, verdadeiro pé-de-boi, que trabalhava na padaria do Soares. Viviam dizendo que graças ao trabalho dela é que o portuga todo ano podia viajar pra terrinha. Ali na roda também estava o filho do Soares, o Bola, que com quase 120 quilos dispensa maiores apresentações. Foi ele quem se levantou da arriada cadeira plástica e foi oferecer o braço ao Seu Fonseca, que quase caiu ao descer da calçada.

Quando soube que o assunto era eleições, apertou os olhos e pôs o dedo na testa franzida, num gesto muito seu, falando em seguida:

- Ih, me lembro quando o Getúlio veio aqui no bairro, inaugurar a avenida, nééééé?

- Ché, agora me vai falar do Getúlio? Tamô falando do Árquimi, seu Fonseca. eu mereço, viu!

- Calma, aí, Seu Cármine, deixa o seu Fonseca, coitado. Era mania do Vicentinho, chamar todo mundo de coitado...


Josimar completou:

- É isso mesmo, Vicentinho. O Seu Carmi num quer dexá ninguém falá, eita cabra da peste!

E assim prosseguia a discussão, cada qual defendendo o seu candidato, e descendo a lenha nos adversários. Menos seu Fonseca, que lembrava, saudoso, do Adhemar. Ééééé, bons tempos!

Num momento em que a freguesia deu uma folga, o Toshio aproximou-se do grupo, e vendo a discussão acalorada, comentou com seu Fonseca:

- Sorte que só tem ereção cada dois anos, né?

Seu Fonseca, que estava sonhando nesse momento com as pernas da Virginia Lane, achou que o japonês estava duvidando da sua virilidade, e como depois contou o Bola, “o velho virou bicho”.

- Broxa é você, japonês safaaaado!

Todo mundo silenciou diante daquela explosão, e os transeuntes que passavam logo formaram a rodinha. E seu Fonseca seguia apoplético:

- Estou velho, mas não estou morto! Pensa que não dou mais no couro? Pois mande a senhora sua mãe aqui pra eu mostrar!

Aí foi o Toshio que pulou o balcão da barraca, esquecendo o respeito pelos mais velhos e o fato de seu Fonseca já estar caducando, e foi pra cima do velho. Este, com os reflexos já combalidos pelos anos, começou a distribuir bengaladas pra todo lado. A primeira vítima foi seu Cármine, seguido pelo Vicentinho da Nena. O Bola interpôs-se entre Toshio e seu Fonseca, formando uma verdadeira barreira humana, enquanto a turma do deixa-disso intervinha.

Desde então a famosa rodinha que se formava em torno da barraca do Toshio se desfez. Mesmo depois que ele se desculpou com seu Fonseca e explicou que não falava sobre desempenho sexual de ninguém, mas sim sobre política:

- Senhoro sabe que na ereção não gosto de bligá, né. Toshio é marufista.

Boa Semana a todos desta terra de todas as gentes.

domingo, outubro 01, 2006

...

Tradicionalmente escrevo o Boa Semana com um tema bem humorado, leve, que trace o esboço de um sorriso no rosto de quem lê. Algumas vezes sai melancólico, é certo, mas sempre com um fio de esperança e invariavelmente com o desejo de uma nova semana melhor que a anterior.
Hoje, entretanto, não consigo escrever nada assim. Hoje escrevo sob o impacto do choque e da tristeza de imaginar 155 pessoas perdendo a vida num acidente aéreo. No ano em que se comemora o centenário do vôo do 14 Bis, quando Alberto Santos-Dumont realizou o sonho de Ícaro, também fica assinalado o maior desastre aéreo da aviação brasileira.
Leio na internet que as esperanças de encontrar sobreviventes são quase nulas, com uma declaração extremamente infeliz do presidente da Infraero: “São só corpos e pedaços de corpos, e mais pedaços de corpos”. Imagine os familiares das pessoas que estavam nesse vôo ouvindo essa frase imbecil. Não, não são corpos ou pedaços de corpos. São seres humanos, são pessoas que têm histórias, não apenas números impessoais ou frios cadáveres. São pais, mães, filhos, namorados, irmãos. São pessoas que tinham alguém a esperar por elas em casa. São pessoas que tinham um futuro promissor ou que já gozavam o merecido descanso de suas aposentadorias. Um grupo de amigos que viajou para pescar no rio Madeirinha, e retornavam cheios de histórias e causos. Eles não são somente corpos. Muitos voltavam de viagens de trabalho, pessoas que certamente tinham responsabilidades profissionais que exigiam seu deslocamento pelo País. Esses também não são pedaços de corpos.
Surgem histórias de pessoas que não deveriam estar nesse vôo, mas que anteciparam seu embarque, e o inverso também. Uns nasceram de novo, outros não tiveram essa chance. Todos eles seres humanos, com seus medos, desejos, fraquezas, amores, sonhos. Não eram apenas corpos. Tampouco pedaços.
Não sei se vocês já repararam, mas quando no Jornal Nacional é anunciada a morte de alguma personalidade importante na vida do País, eles deixam reservado o último bloco para as informações principais sobre a pessoa. E ao encerrar o noticiário, no lugar do tradicional “Boa noite” risonho, o que vemos e ouvimos são expressões sérias e um lacônico “Até amanhã”. Nem mesmo tocam o também tradicional fundo musical. Silêncio, enquanto correm os créditos pela tela.
Pois hoje me reservo o direito de, em homenagem às vítimas e seus familiares, me despedir de vocês sem o infalível Boa Semana.
Em memória dos que se foram, e em respeito aos que ficaram, até a próxima semana.

Silêncio.......................................................................................................................................................

domingo, setembro 17, 2006

Boa Semana - More than words

Hoje pela manhã tirei uns minutos pra FALAR pelo MSN com minha amiga Elô. Discutimos se “falar” refere-se apenas à manifestação oral, pois tinha gente que implicava por ela usar o verbo com outras formas. Ora, os olhos falam, o corpo fala, as cartas falam, até o silêncio fala. Como querer limitar uma coisa dessas? Eu, já meio desbocado, chamei esse pessoal limitado de quadrúpede: na terra deles nunca ouviram falar em conotação?

Aí, até fiz um teste com a Elô: falei pra ela pensar numa pessoa querida e fechar os olhos. Depois perguntei se ela havia visto essa pessoa. Respondeu que perfeitamente. Então eu perguntei: como você pôde ver, se estava de olhos fechados? É isso. Tem gente com mentalidade tão tacanha, de olhar míope, que se prende a definições dicionarescas, quando a vida é muito mais do que palavras encarceradas num livro. Foi outro assunto de que tratamos: a pobreza material e a pobreza de espírito, esta muito mais lamentável e perniciosa que a primeira, visto que gera intolerância, violência, mesquinhez, preconceito. E o mais incrível é que acabamos parando na infância e FALANDO o quanto ela é fundamental na nossa formação. Isso veio por casar com o que eu estava fazendo naquele momento: lendo textos do VivaSP. Deixo a amiga aqui e vou FALAR sobre outro assunto. Até mais, Elô.

Ontem fui até Sampa, pra reunião do grupo do VivaSP em mais uma fase de elaboração do livro. Nos encontramos no metrô Vila Madalena (que eu ainda não conhecia), e de lá fomos para a casa da Silvana, que se recupera de uma cirurgia na perna. Conheci mais alguns integrantes, ou melhor, algumas: Anna Boni, Ana Mortari, Silvana e Helena. Todas, naturalmente, se espantaram com minha idade: “Mas você não é um velho!”. É que a média de idade dos participantes gira em torno de 50 anos; some-se a isso o fato de eu contar histórias do arco-da-velha, e está explicado o espanto. Mas o melhor: achavam que eu tinha menos que trinta, carinha de menino; Helô e Helena lamentavam já ter filha ou netas comprometidas, desperdiçando candidato tão especial. Ainda que ache que elas gastaram vela com mau defunto, saí de lá mais feliz que leitão no cisqueiro.

Ficamos por mais de três horas debatendo quais as maneiras de separar o material, de como e quando seriam as próximas reuniões. O que acabou decidido: os 650 textos selecionados serão lidos por todos, média de 120 por semana, encontro quinzenal para reunir as palavras-chave encontradas e primeiro mapeamento dos temas. Hoje já li, reli e anotei trinta, os quais vou reler mais tarde.

Não vou falar da bela casa da Silvana nem do lanche delicioso (com direito à brinde com champagne), das risadas nem das conversas que tive com cada um. Só vou relatar um trecho do que a Helena me falou sobre Lobato.

Apesar de ter ressalvas em relação a algumas atitudes dele, não nega que sua obra infantil foi das melhores coisas de sua infância. Já casada, possuía casa na Itália, onde passava parte do ano. Os amigos de lá insistiam pra que ela se estabelecesse de vez no país. Afinal, não adorava a Itália?

Sua resposta foram as mais belas palavras que já ouvi sobre ele, e olhem que já pesquisei muito a vida desse cidadão: “Sim, adoro a Itália, mas não posso viver num país onde as pessoas quando crianças não leram Monteiro Lobato”.

Boa Semana!

Oito ou oitenta

Aceitando a sugestão da Kandoca no seu blog, resolvi escrever 8 coisas sobre minha pessoa. Parece fácil, mas exige um pouco de reflexão e muito de autocrítica... Essa é a parte mais complexa.
E a forma? Ela achou um jeito interessante, de colocar frases que casavam com o tema. Não posso plagiar. Pior que quase tudo na História ou na cultura encasquetam com 3, 7, 10 ou 12: Três Reis Magos, os Sete Anões, os Sete Mares , os Dez Mandamentos, os 12 Apóstolos, os 12 Trabalhos de Hércules. Mas oito? Não tem nada marcante com oito. Só novela...

Páginas da Vida
Bom, ler sempre foi uma compulsão, e que tem me valido muita coisa. A leitura ajudou a enriquecer meu vocabulário, a escrever corriqueiramente e me expressar com facilidade. Isso tem algumas vantagens: permite que um tímido como eu se passe por grande ator, contador de piadas, aquele que enfrenta platéias de professores ou colegas sem o menor problema. Também desenvolveu minha memória, o que dificilmente me levava a estudar para provas, mas me proporcionava bons resultados, quase sempre. E a vida sempre foi boa escola...

Selva de Pedra
São Paulo, meu amor. A história paulista em especial me fascina, e grande parte de minha biblioteca se compõe de livros sobre esse assunto. Sempre gostei de saber do passado e sempre senti saudade do passado... dos outros! Sim, adoro ouvir histórias dos mais velhos sobre sua infância, sobre seus antepassados, sobre a cidade. Sou paulistano com muito orgulho.

Celebridade
Tenho uma facilidade enorme de fazer amigos, de me relacionar, de usar de diplomacia e ser querido por muita gente. Faço sucesso com gente dos oito aos oitenta. Sou capaz de, numa festa, reunir vários grupos de diferentes origens e circular tranqüilamente no meio de todos. Minha mãe chama isso de “Ricardo pra uso externo”. O Lendro sempre diz que eu me saio bem tanto no luxo quanto no lixo...

O Dono do Mundo
... mas também sou extremamente crítico, dominador, centralizador e mandão, como assinalaria a Taty. Sim, Don Corleone, que às vezes tem bons resultados, outras nem tanto. Se pego antipatia por alguém, o infeliz pode esquecer de cair em minhas graças novamente. Sempre acharei um defeito, uma falha. Rancoroso, enfim. E isso é ruim.

Mulheres Apaixonadas
Sempre faço piadas ou brincadeiras machistas, mas não posso negar o quanto as mulheres são importantes na minha vida. Por isso, que ainda que eu me proclame um solteirão que vai morrer sozinho, tossindo seu pigarro e gemendo os reumatismos, isso é só um disfarce pra esconder o romanticão que vai aqui dentro, que ainda sonha com a alma gêmea (quer dizer, gêmea não, que se parecer comigo será muito feia).

Vale Tudo
Ainda que pareça estranho em pleno século XXI, eu tenho pudores e princípios que vão contra o “vale tudo” generalizado que assola esta terra onde canta o sabiá. Ainda acho inadmissível pisar nas pessoas pra se dar bem na vida, nunca me vangloriei por ter recebido uma promoção, tenho imensa vergonha de ser elogiado publicamente, acho que devolver troco a mais no supermercado ou ceder lugar no ônibus são coisas normalíssimas, e não motivo pra me chamarem de babaca.

Suave Veneno
Sarcasmo. Ironia. Humor negro. Sim, eu adoro essas coisas. Sou impiedoso muitas vezes, na linha do “perco o amigo, mas não perco a piada”. Isso já me valeu bons e maus momentos. Mas muitas vezes é sinceridade brusca, que disfarço com um pouco de humor. Nem todo mundo gosta, uns por motivos morais, outros por não alcançarem o fino das intenções...

O Outro
Fico lembrando da minha infância e me perguntando se cumpri todos os planos de então. Sou o mesmo menino em versão adulta? Não sei. A única certeza é que daqui a vinte anos estarei repetindo a mesma pergunta, e daqui a 30, 40, até o fim. Ainda sou o mesmo?

segunda-feira, setembro 11, 2006

BOA SEMANA - A casa do meu Bisavô (30/09/2005)

Era uma vez um menininho que às vezes ia visitar seus bisavós, que moravam em Artur Alvim, na Zona Leste paulistana. Ele teria nessa época 4 ou 5 anos, e em sua mente muitas coisas ficariam indelevelmente marcadas.

A rua íngreme ainda era de terra ou semi-asfaltada; no lugar de calçada havia um rio, e sobre ele atravessava-se uma pinguela (Sabem o que é? Uma pequena ponte, rústica, às vezes feita com um único tronco, e que serve para dar vau em córregos). Meu Deus, que medo de cair naquele rio! Apertava a mão do pai e passava rapidamente.

Ufa! Atravessada a pinguela, abria-se o grande portão de treliça verde e entrava-se sob sombra de uma frondosa parreira. Logo o Funchal começava a latir furiosamente: era um grande cachorro preto, com as patas e a ponta do rabo brancas (o bisavô teve vários cachorros, e todos com o mesmo nome, homenagem à capital da Ilha da Madeira).

Então o menino via aparecer aquele homem alto, muito alto, de chapéu cinza e fala enrolada; logo atrás aparecia uma velhinha de coque nos cabelos brancos, baixa e gorda, parecia um barrilzinho, e sempre risonha. Tampouco o menininho entedia o que ela dizia, mas o intrigava o fato de ela ter bigode...

Depois de pedir a benção aos dois, o menininho corria para o fundo do quintal e ia ao galinheiro. Grudava-se na tela e ficava absorto vendo as aves: as gordas galinhas rodeadas de graciosos pintinhos ou o majestoso galo plimú que empinava a cabeça e cantava alto.

No fundo do terreno, depois das bananeiras e da horta imensa, e do célebre poço ("Sai daí da beira do poço, menino!"), havia um enorme barracão onde eram guardadas rações e ferramentas.

O melhor mesmo, porém, era a sala de visitas: pintada de rosa antigo, com sofá de caviúna e courinho avermelhado, era escura, pesada, e com o velho relógio de parede marcando as horas: téin, téin, téin... Um Sagrado Coração e outras gravuras de santos com ar de sofrimento aumentavam aquele clima sombrio. Mas tudo isso era insignificante: a grande maravilha era uma pequena janelinha de madeira, na parede do fundo. Junto dela, um banquinho. Era lá que o menininho subia e ficava na ponta dos pés; em seguida abria a janelinha quadrada, que devia ter um palmo, não mais que isso. Ali morava o encanto: era um lugar secreto, com uma lâmpada muito fraca, mas que permitia ver que as galinhas que há pouco ciscavam no galinheiro magicamente apareciam atrás daquela parede! O menino ficava ali, horas, embevecido com aquele mistério. Como era possível?

Os anos passaram, o menino cresceu, os velhos morreram, a casa foi vendida e demolida. Nunca mais o menininho voltou lá. Mas hoje o homem que ele se tornou sabe que o rio assustador era apenas uma valeta, e o imenso barracão, um pequeno cômodo. A sala sombria era somente uma sala de casa de gente antiga, portugueses de velha cepa. E o grande mistério da parede, na verdade, era fruto de uma casa construída fora do alinhamento do terreno, que depois foi murado e deixou aquele desvão. O bisavô apenas aproveitou aquele espaço pra recolher as galinhas a salvo de eventuais ladrões.

De tudo aquilo, sobraram as lembranças na cabeça de um homem de trinta anos. Às vezes, nos momentos de solidão, ele olha fixamente para o velho relógio, quase centenário, que insiste em recontar histórias do passado: téin, téin, téin...

E as horas passam, inexoravelmente...

domingo, setembro 03, 2006

Boa Semana - Parole

Estava pensando em como as pessoas dizem palavras com sentido totalmente diverso do real significado, na grande parte das vezes pela semelhança do som, isso que em linguagem dos gramáticos se chama fonética. Outras não.
Querem um exemplo? Conheço um monte de gente que diz “geração” no lugar de “encarnação”. Comentam qualquer fato e lá vem a pérola: “Acho que na outra geração eu fui gordo” ou “Na outra geração devo ter morrido afogado, esse medo de água”.
Uma que também concorre é “descendência” no lugar de “ascendência”: como posso dizer que uma linda menina loirinha de olhos azuis tem “descendência” alemã? Já vi mães com 12 anos, mas com cinco?
Muita gente ainda diz “nortista” ao invés de “nordestino”, “tráfico” no lugar de “tráfego”, “concedido” por “concebido” ou trocam “circuncisão” por “circunscrição”, o que pode levar a sérios problemas...
Fiquei sabendo dia desses, num encontro do VivaSP, que para indicar algo de muito vulto o correto é “vultoso”, e não “vultuoso” como eu sempre escrevi e falei. Valeu, Heloísa.
Mas todo mundo tem uma determinada cisma com essa ou aquela palavra, às vezes até uma expressão. Já escrevi um Boa Semana sobre meu hábito de dizer “Olho do dono engorda o cavalo”, substituindo o boi da história por um eqüino. E outro dia no “Idéias na Janela” descobri problema semelhante ao meu: quando criança achava que Tumitinha era um menininho de pouco amor na cantiga de roda:
O anel que tu me deste
Era vidro e se quebrou.
O amor de
Tumitinha
Era pouco e se acabou”.
Outra música era da Marina**, num trecho que diz: “Sentir o seu corpo pesando sobre o meu”, eu entendia “peludo” no lugar de “pesando”. Ora, podia ser tema musical do Tony Ramos. E uma amiga que cantava “Eu saí do avião, com um tesouro de irmã”, no lugar de “Açaí, guardião, som de besouro, imã...” Pobre Djavan.
Muitas vezes o ouvido engana, ou a malícia entra no lugar, e o caldo entorna. E a Marininha foi minha vítima graças a uma frase num dia em que ela estava meio quieta, ensimesmada. Perguntei se estava bem, se havia acontecido alguma coisa, ao que ela respondeu: “Ai, meu, 715 coisas pra fazer. Sabe, eu fico assim tensa, compenetrada”. Eu não perdi a deixa: “Ah, tensa com penetrada? Mas isso é algum trauma? Sua primeira vez não foi legal?” Até hoje ela sofre com esse “trauma sexual” que eu inventei.
Sem falar no estrupo, na questã, no registo, no cheque adoçado ou assustado... Muita gente diz essas palavras baixinho, meio sussurradas, já que vagamente sentem haver ali algum erro, mas existe a maioria que brada aos quatro ventos, sem dó nem piedade dos ouvidos alheios. Enfim...
Entrou por uma “torta”, saiu pela outra, quem souber que conte outra.
Boa Semana!

** O nome correto da intérprete é Marisa Monte. Troquei um "s" por um "n", e olha o que deu... Obrigado pelo aviso, Simone!

segunda-feira, agosto 28, 2006

Boa Semana

Sábado eu fui até a "Casa das Rosas", um dos últimos palacetes remanescentes da Avenida Paulista. O que havia lá? Ora, além de muitas crianças, pois existia uma programação especial para elas, encontrei casais de namorados, grupos de amigos e famílias andando por entre os jardins e admirando as flores que batizaram a casa.
Mas o motivo de eu estar ali era um encontro com alguns dos componentes do VivaSP (vejam o link ao lado), para comemorar os 3 anos do projeto. Eu era novato, não conhecia ninguém pessoalmente. Mas descobri o Luiz Simões, uma pessoa fantástica, e como era a primeira vez que vinha num encontro, ficamos esperando o resto da turma. Logo conheci o Juliano, idealizador e "mestre" do grupo. Fomos para uma das salas do primeiro andar e começaram a chegar mais amigos: a Lilu e o Gastão, a Asunción, a Heloisa, o Osnir, o Nivaldo com a Nice, a Carmela, a Dona Iracema e tantos mais. A Lídia assustou-se ao me ver: "Mas vc é tão novo!" Pelas minhas histórias todo mundo me julga nonagenário (e com razão). O Geraldo Nunes, como "padrinho" do Projeto também esteve lá e apagou a vela do bolo junto com o Juliano.
Contei até uma história das muitas que ouvi do Tio Pedro, e ouvi outras dos amigos ali presentes. E teve música com o talento fabuloso do Luis Gastão, e poesia com o amigo trazido pelo Osnir. Tiramos fotos, demos risada. Não vou esquecer do jeito bonachão e despachado da Asunción, uma espanhola divertidíssima, nem do bom humor e carisma da Heloisa, tampouco das histórias picantes da Viúva Negra Wilma. E quase convenci a Inês a publicar suas histórias também.
Com Nivaldo dividi as lembranças de um velho álbum de família, e nos emocionamos juntos, ele revivendo o passado, eu imaginando como foi. Buscamos lembranças em comum, as dele vividas, as minhas ouvidas.
Teve um sorteio de flores feitas pela Lilu e brindes trazidos pelo Nivaldo, e os novatos foram contemplados (eu entre eles).
Nada conseguiu estragar aquela tarde, quando ainda fomos contemplados com uma lenda viva da cidade: o cara do carro amarelo. Conhecem? Não? Pois será tema de outra crônica, interessantíssima.
E o ouriço que estava me arranhando a garganta desde sexta-feira, resolveu abandonar-me, mas em seu lugar deixou uma mina d´água instalada em meu nariz. Ontem à noite já parecia um rabanete que eu trazia no rosto, de tanto assoá-lo...
Hoje o resfriado ficou me importunando como irmão caçula quando faz birra. E não estava no meu melhor humor, até receber o convite pra largar tudo e ir morar num barco, numa praia de sonho, de papo pro ar.
Já pensou que maravilha ficar naquela balanço gostoso das ondas, sentindo a maresia, ouvindo a música que o vento traz de outros mares. Contando estrelas à noite, ou esperando o dia raiar, com o sol surgindo no meio do oceano. E navegar à esmo, ao sabor da veneta, sem lugar ou dia certo pra chegar. Ah, como a imaginação singra pelos mares da fantasia...
Quem sabe o próximo Boa Semana não virá trazido pelas asas de uma gaivota? Até lá!

domingo, agosto 20, 2006

Boa Semana

Em conversa com a Marina, não sei porque cargas d´água o assunto recaiu sobre mau-olhado e benzimentos. Ela mostrou-se leiga sobre tais assuntos, e diante de meu espanto, pediu que lhe contasse sobre essas crendices. Fez mais: cobrou um Boa Semana sobre esse tema. Sendo assim, hoje trataremos de um tema esotérico-religioso-cultural, vejam só!
O Brasil é um país naturalmente repleto de crendices e práticas religiosas que muitas vezes estão à parte da liturgia oficial de cada igreja ou crença. A miscigenação que formou o povo brasileiro unia três povos profundamente influenciados por rituais e práticas que mesclavam os fundamentos da religião com fatores culturais do próprio ambiente. Isso deu origem ao chamado sincretismo religioso, ou seja, a mistura de liturgias de duas ou mais religiões. E, além disso, houve o acréscimo de superstições populares pra finalizar o pacote.
Quem nunca pediu para São Longuinho ajudar na busca de um objeto perdido? Quem fazia isso antigamente era Santo Antonio, mas como este também exercia a função de casamenteiro, terceirizou o serviço. Os mais ortodoxos estão escandalizados com os termos que usei? Ora, uma das características do cristianismo português é a “familiaridade” com os santos e outros membros da corte celeste. As moças casadoiras, pois não tiram elas o Menino Jesus dos braços de Santo Antonio até que ele traga um pretendente? Outras ainda fazem pior: colocam o santo de cabeça pra baixo, às vezes dentro da água, até que ele resolva o problema do celibato indesejado. E conheço muita gente que todos os dias coloca uma xicrinha de café aos pés de São Benedito. Lobato conta que numa casinha de um Jeca, na parede “embarrigada”, prestes a ruir, havia uma imagem de Nossa Senhora pendurada: “Ó, Jeca, essa parede logo cai”, ao que responde o matuto
- Ara, num vê que tem Nossa Senhora pra escorá? A parede num tem coragem de cair!
Ora, tendo toda essa familiaridade com os santos, nada mais normal que alguns fiéis serem intermediários entre o Céu e a Terra na resolução de problemas de ordem espiritual. O que os kardecistas denominam “passe”, ou seja, a transmissão de bons fluídos espirituais, os católicos chamam de benzimento, e ele tem uma vastíssima gama de atuação. Existem doenças que só se curam pelas mãos de um benzedor ou benzedeira: espinhela caída, cobreiro, mal de simioto, bucho virado... E há os que benzem animais, plantações. Existe até mesmo benzimento do mal: pois em nosso folclore o Saci Pererê não “reza” os ovos ou o milho de pipoca, fazendo gorar os primeiros e transformando em piruás os últimos? Pois todo caboclo sabe que contra isso só mesmo fazendo uma pequena cruz com carvão em cada ovo posto para chocar, ou entoando uma velha cantiga – decerto de origem africana – quando estoura pipoca: “Maria Sororoca, rebenta pipoca, Maria Sororoca, rebenta pipoca”.
Olho-gordo ou mau-olhado (mau com “u”, pois é antônimo de bom; é corruptela de mau-olhar) é um dos males mais comuns tratados pelas benzedeiras; utilizando um raminho de alecrim umas, ou um pouco de óleo outras, recitam orações pedindo ajuda dos santos e anjos para tirar a inveja e os perigos do caminho daquele por quem intercedem. E enquanto fazem isso, é um não ter fim de bocejos. Quanto mais abrem a boca, maior a gravidade do caso.
Muitas anedotas também existem por conta dessa fé popular: contam que um fazendeiro de Araçatuba estava perdendo muito gado com uma terrível peste, e foi atrás de um benzedor afamado. Pois lá vem o Tio Juvêncio, e nem bem chega na fazenda bota os olhos na mulher do fazendeiro, moça mal entrada nos trinta, bem feita de corpo, pele trigueira, rosto brejeiro.
Muito compenetrado, o benzedor diz que precisa de um quarto escuro e da ajuda da mulher do fazendeiro. Este em princípio reluta, mas pensando nos prejuízos já sofridos com a perda do gado, finalmente acaba por ceder. Entretanto, fica de ouvido colado na porta, escutando o que dizia o benzedor:
- Passo a mão no cangote, pra salvar o garrote!
- Passo a mão na canela, pra salvar a vaca amarela!
O fazendeiro, exasperado, suava frio, mas continuava ali, firme. O benzedor continua:
- Passo a mão na coxa, pra salvar a vaca mocha!
- E passo a mão na virilha, pra salvá a novilha!
Aí o pobre fazendeiro não se agüentou, e arrombando a porta gritou:
- A vaca preta e o boi zebu deixá morrer!!!
Boa Semana!

BOA SEMANA (09/07/2006) - Domingo

E dona Bia Falcão termina seus dias tomando champagne de frente para o Bois de Bologne... Esse é o mundo real, quem disse que o vilão se ferra? Laulau, Maluf, Jorgina, Barbalho... algum foi "punido"? Algum foi castigado? Que nada! Estão com sua taça de champagne, cada qual em seu Bois particular (Bois de Bologne é um dos lugares mais famosos de Paris; pronuncia-se Boá de Bolonhe; Boa Semana também é cultura).
Bom, como não sou vilão de novela, eu não tomei champagne nem fui de jatinho para Europa. Fiquei aqui mesmo, nessa pacata Santana de Parnaíba. Acendi meu fogão de lenha, onde foi feito o almoço dominical. Pouco antes de sentar à mesa, fui ao galinheiro e peguei alguns ovos. Fritei-os. Coloquei num prato arroz branco e estourei aquela gema amarelinha por cima. Hum, que coisa mais pobre, dirão vocês, mas eu discordo: que delícia
Na chapa, uma chaleira sempre com água quente. Basta aumentar um pouco o fogo e já está fervendo para o café, que depois permanece sempre quentinho, ao pé do fogo. Depois, aproveitando o forno quente, minha mãe fez uma torta de frango (acabei de provar, está daqui - puxando a ponta da orelha).
Aí fui ler um pouco de Lobato, dos seus tempos de advogado recém-formado na Taubaté de 1905, ou como promotor em Areias, uma cidade morta. Ler o que ele escreveu naquele período é sentir-se numa tarde modorrenta, de calor, com ar parado e o silêncio eterno das decadentes cidades de então.
Depois, ver a vitória da Itália, já que nosso Portugal, mesmo lutando bravamente, não chegou lá. Sim, eles jogam muito mal, mas têm garra. E o Felipão nos vinga daquele purgante do Parreira. Como diria Emília, aquele cara-de-cavalo-melado!
Hoje comemoram-se setenta e quatro anos da Revolução Constitucionalista. Deve haver pouquíssimos veteranos pra desfilar no Ibirapuera. Sim, se o camarada tinha vinte anos na época, hoje tem 94... Certamente tem mais soldados dentro do Mausouléu do que fora...
Sabiam que a única mulher enterrada lá é dona Maria Magalhães Pinto Alves, a dona Nicota? Foi uma das "damas paulistas" que mais se engajaram na Revolução. De sua casa saiu a cozinheira que alistou-se como homem e só foi descoberta após um ferimento (exato, como a Diadorim, do Guimarães Rosa). Maria José, a valente mulata, ficou conhecida como Maria Soldado.
E entre as damas que chefiavam a ajuda aos soldados no front, além de dona Nicota (ou Cota) Pinto Alves, existia dona Candinha Prates, esposa do riquíssimo Conde Prates. E o povo fazia graça com a sigla símbolo da revolta paulista. No lugar de designar Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo, os jovens que morreram no dia 23 de maio, pilheriava dizendo que MMDC significava "Manda Muito Dona Cota", mas "Manda Mais Dona Candinha". O povo não perdoa nada, ainda bem! Essa é sua melancólica vingança. Ridendo castigat mores...
Vocês já devem ter percebido que hoje estou naquela modorra, pulando de assunto, falando coisas sem importância, né? Ora, mas hoje é domigo, pede cachimbo. Cachimbo é de barro, bate no jarro. Jarro é fino, bate no sino. O sino é de ouro, bate no touro. O touro é valente, bate na gente. A gente é fraco cai no buraco. O buraco é fundo, acabou-se o muuundoooo!!!!
Boa Semana!

domingo, agosto 13, 2006

Boa semana - Dia dos Pais


Ora, se hoje é dia dos Pais, é sobre esse assunto que vocês esperam o Boa Semana, não é? Pois vou satisfazê-los, mas à minha moda. Vou falar sobre meu bisavô, que também foi pai, claro, além de ter sido responsável pelo primeiro ramo da família no Brasil.
Cypriano Pereira nasceu em 22 de julho de 1878, em Penafiel, norte Portugal. Sobre sua vida lá pouco sabemos. O certo é que ele aqui chegou em 1916, desembarcando na então Capital brasileira, o Rio de Janeiro. Trazia a mulher, Anna, grávida de oito meses e o filho Alfredo. Em novembro daquele ano nascia Acylina, a primeira brasileira da família.
Depois, já em São Paulo, nasceram Mário e José (mortos antes dos 4 anos), “Maria” da Conceição [1](minha avó materna), Rosa Maria (que morreu aos 2 anos), Olinda, Yolanda e Assunção, que morreu com alguns meses de vida. Em 1935 fica viúvo, e tem cinco filhos sob sua guarda. Naturalizou-se brasileiro para manter o emprego de jardineiro na Prefeitura, e conseguiu juntar os quatro contos de réis para comprar uma casa na Vila Paulicéia, em Santana.
A vida seguiu, vieram os netos, um bisneto, e ele chegou à avançada idade de 92 anos. O mais curioso é que ele não bebia água; quando alguém insistia, ele marotamente respondia: “Água? Ainda se fosse ardente...” Morreu como um passarinho, em 1970. As quatro filhas ainda estão vivas. Dele ficaram poucas fotos e um relógio de bolso que trago comigo, funcionando perfeitamente apesar dos mais de cem anos. E ficamos nós, a terceira geração, que já se desdobrou em quarta. Sei que logo ele se apagará nas memórias dos mais jovens, e será como tantos de nossos antepassados que se perderam nas brumas do tempo. Essa é a sina do homem, lutar, sofrer e permanecer na lembrança de duas ou três gerações, já que a vida assim se faz.
Uma Boa Semana em especial aos pais, e aos pais dos pais, e aos pais dos pais dos pais...


[1] Minha avó foi registrada como Conceição Pereira, mas como sua madrinha queria que ela se chamasse Maria, foi o nome que pegou e pelo qual ela é conhecida. Apesar de não ser oficial, em seu diploma do quarto ano está registrado "Maria da Conceição Pereira".

Aurora


Uma das vantagens de morar na "roça" e levantar cedo pode ser vista na foto acima. Essa é a visão que tenho da varanda aqui de casa. Não vou ceder ao lugar-comum de que uma imagem vale mais que mil palavras, isso todo mundo sabe. Mas o que a foto não pode transmitir é a brisa fria que corta o rosto, mas traz consigo o cheiro do orvalho que cobre as plantas. Também não se ouve o canto alegre do joão-de-barro ou os galos que disputam o anúncio do alvorecer. Mas ainda assim, incompleta, a imagem pode mostrar a beleza que cada dia nos oferece.

quinta-feira, agosto 10, 2006

BOA SEMANA (28/11/2005) - O lenço

Todo sábado ele aparecia na feira, andando devagar, passos meios inseguros, roupa simples, já puída, mas muito limpa. Devia estar no fim da casa dos cinqüenta, mas aparentava ter bem mais, o rosto vincado de rugas, o cabelo ralo e grisalho. Chegava sempre no final da feira, quando tudo é mais barato e comprava algumas batatas, uma ou duas cebolas, dinheiro muito contado. Um dia ele se ofereceu para ajudar na desmontagem da barraca, em troca de um pouco de batatas. A dona da banca, estranhando, perguntou o motivo e ele, cabisbaixo, muito sem graça, disse que não tinha dinheiro para fazer a feira, por isso oferecia seu trabalho. Condoída, falou que ele podia dizer o que precisava, que não iria cobrar nada.
Subitamente o homem empinou o peito, levantou a cabeça e respondeu que não era um pedinte, que não queria nada de graça. Não tinha dinheiro, mas podia trabalhar. Ela assustou-se com a reação e explicou que não queria ofendê-lo, que ele poderia comprar o que precisava e pagar depois. Ele então aceitou, e disse que no próximo sábado pagaria sua dívida. Repetia que ela podia ficar tranqüila, que ele viria pagar, falou o endereço duas ou três vezes, insistia: “Pode deixar que sábado trago o dinheiro, a senhora fique tranqüila”.
Passada uma semana, lá estava ele, com o dinheiro para pagar o que devia; desmanchou-se em agradecimentos pela confiança depositada, e repetia que nunca poderia agradecer aquele gesto.
Desde então conversavam sempre, e ele contou que trabalhou mais de trinta anos como alfaiate, e dos bons, mas que um problema na vista começou a dificultar sua vida. Descobriu que tinha catarata. Logo não conseguia atender aos já escassos clientes e conseqüentemente pagar o aluguel da alfaiataria. Teve que desocupar o imóvel, e começou a trabalhar em casa. Mas as coisas só pioravam, pouca gente mandando fazer roupa, a visão cada vez mais fraca, a pensão que nunca saía, presa na burocracia que prima em vitimar os mais necessitados. Assim, ele se encontrava numa situação de quase penúria, vivendo de pequenos expedientes, uma barra de calça aqui, um remendo ali. Aos sábados, com o pouco que ganhava, vinha fazer a feira, sempre era mais barato.
A dona da barraca, penalizada, sem que ele percebesse colocava mais batatas do que ele havia pedido, cobrava menos do que a balança acusava, e até mesmo algumas roupas trouxe pra ele consertar. Ele só fazia por agradecer.
Passaram-se alguns meses, e um sábado ele apareceu, como de costume, mas vinha mais alegre, o rosto sem aquela sombra de tristeza. Cumprimentou-a efusivamente, e entregou-lhe um pequeno embrulho em papel pardo. Ela abriu o pacote e seus olhos encheram-se de lágrimas: ele havia bordado um lenço com as iniciais dela. Disse que era apenas uma mísera demonstração de gratidão por toda a ajuda recebida, e que nunca poderia retribuir tudo o que ela fazia por ele.
Passaram-se os anos, ela vendeu a barraca, deixou a feira e nunca mais teve notícia daquele senhor. Mas até hoje tem o lenço, guardado com carinho, e sempre que conta essa história seus olhos se enchem de lágrimas, lágrimas de alegria, por um dia ter visto a personificação da gratidão.
Boa Semana!

quarta-feira, agosto 09, 2006

BOA SEMANA (01/08/2005) - Último Desejo

Último desejo (Noel Rosa)
“Nosso amor que eu não esqueço
E que teve o seu começo numa festa de São João
Morre hoje sem foguete, sem retrato e sem bilhete,
Sem luar e sem violão.
Perto de você me calo, tudo penso e nada falo
Vem um medo de chorar
Nunca mais quero seu beijo
Mas meu último desejo você não pode negar.
Se alguma pessoa amiga pedir pra que você diga
Se você me quer ou não
Diga que você me adora
Que você lamenta e chora a nossa separação.
Mas àqueles que eu detesto
Diga sempre que eu não presto
Que o meu lar é o botequim
Que eu arruinei sua vida
Que não valho a comida que você pagou pra mim

Ontem escutei essa música, e que longe de ser “dor-de-corno”, é antes uma prova de elegância. Ele tem seu orgulho,que expressa ao recusar futuros beijos, mas acima de tudo quer preservar a imagem dela, diferenciando as versões para os amigos e os inimigos. Ainda que nem todos gostem, reconheçam que lirismo e ritmo estão latentes na composição. Noel era um mestre.
Engraçado esse negócio de gosto musical; eu não tenho um gênero predileto,o que eu gosto é de boa música. E pra mim boa música tanto pode ser um canto gregoriano como um rock, um samba ou uma moda caipira. O que vale é a qualidade da música. Você pode não gostar de música clássica, mas irá negar o talento e genialidade de Chopin ou Mozart? Daiane dos Santos levanta a torcida ao som de Brasileirinho.Por que um choro e não um funk? Em casamentos, a Marcha Nupcial tem sido substituída por belíssimas músicas, mas ainda não ouvi tocarem Na Boquinha da Garrafa. Música boa é aquela que nos faz bem, nos agrada, nos traz boas sensações. Há pouco tempo assisti “Copacabana”, e em determinada cena, uma velhinha de seus 70 anos e tantos anos diz que vai cantar uma música de um grupo do seu tempo, mas que infelizmente já se foi. Quando a gente espera algum conjunto do fundo do baú, ela ataca de Mamonas Assassinas! “Meu tempo” não significa passado, significa o que vivemos agora, o presente, e a música é atemporal. É isso.
Fiquem bem e Boa Semana.
"Tudo é loucura ou sonho no começo. Nada do que o homem fez no mundo teve início de outra maneira - mas já tantos sonhos se realizaram que não temos o direito de duvidar de nenhum." M. Lobato

BOA SEMANA (20/06/2006) - O pinguim no bonde

Ontem, ao receber mensagem de um velho amigo, entre outras coisas ele dizia ter ficado esperando o Boa Semana. Dei um tapa na testa: caracoles! Pois não é que com feriado, jogos e o diabo, acabei esquecendo de mandar o Boa Semana? Confesso que na hora corei de vergonha, e hoje dei tratos à bola pra tentar remediar. Bem, quando se briga com a namorada, o que fazemos depois? Tentamos adoçar-lhe o bico com algum bombom fino, não é?
Pois assim é que vou adoçar o bico dos meus leitores com uma história saborosa acontecida há alguns anos com meu amigo Lobato numa temporada em Santos. Ele mesmo conta em carta de 15 de julho de 1915 para o amigo Rangel:

“... Nas pedras de São Vicente peguei outro pingüim, de asinha machucada. E por causa deste coitadinho tive de brigar no bonde. Eu o trazia ao colo. O condutor, um português bem merecedor de que Cunhambebe o houvesse comido, implicou. “O regulamento purive conduzir aves nos bondes”. Eu quis discutir calmamente. “Aves tem pena, meu senhor, e onde estão as penas deste vivente?”, aleguei. Ele teimou que era ave. Eu jurei que o pingüim era filhote de foca, segundo a opinião de todos os zoólogos ou exploradores ao tipo Amundsen, etc. – uma coisa comprida. Minha idéia era manter a discussão até que me aproximasse da casa do Heitor, mas o raio do mondrongo teve uma idéia luminosa. Fazer parar o bonde. “Com a ave o bonde nan segue!” Eu ainda fiz chicana: “E se o Ruy estivesse aqui? Seguia ou não o bonde?” “Que Ruy?” perguntou o alarve. “Ruy, a Águia de Haia[1]”. Ele desconfiou que eu estava a “mangaire” e fez parar o bonde e foi a um telefone “falar à Companhia e pedir pruvidencias”. Voltou. Continuou o estúpido bate-boca. O bonde estava se atrasando. Havia mais gente dentro. Tive de ceder. Insultei-o à portuguesa e desci. A casa do Heitor não estava longe. Depois de exibido lá o meu pingüim, soltei-o de novo no mar. Com que gosto se meteu a nado! Quando vinha uma onda enristava o bico e furava-a. E lá foi nadando e sumiu-se ao longe. Talvez tenha sido o único pingüim no mundo que jamais andou de bonde.”

Bom, esperando ter me redimido do atraso, saio de fininho como o pinguim do Lobato...
Boa Semana!

[1] Rui Barbosa (1849-1923), jurista, jornalista e político brasileiro. A participação de Rui na Conferência da Paz, encerrada em 18 de outubro de 1907, repercutiu na imprensa internacional, colocando em evidência uma brilhante atuação. Quando desembarcou no Brasil um povo envaidecido e orgulhoso consagrava-o como a Águia de Haia. Rui atingia o ápice da glória.

BOA SEMANA (25/06/2006) Noite de São João

Diz a crendice popular que a noite de São João é a mais fria do ano, mas desta feita a voz do povo engasgou. A noite estava agradável, com um céu pintalgado de estrelas e sem o menor fiapo de nuvens. No pátio a fogueira já estava acesa e de quando em vez algum pedaço de madeira estalava e mandava mais centenas de estrelinhas pro céu. As bandeirolas coloridas, que lembravam os quadros de Volpi[1], eram agitadas pela leve brisa, fazendo um farfalhar gostoso de se ouvir.
O fogão a lenha já estava aceso e sobre a chapa de ferro ferviam o quentão e o vinho quente, que desciam queimando a garganta, fazendo tossir, piscar os olhos; santo remédio pra matar a gripe ainda no ovo. Na grande mesa uma profusão de iguarias que era de encher os olhos: cuzcuz, bolo de milho, de mandioca, batata-doce, tortas, pipoca, doces de diversas qualidades. As pessoas ficavam ao redor da mesa, indecisas sobre qual daquelas gostosuras experimentar primeiro. Cada um trazia sua contribuição no velho hábito do mutirão, que em verdade era o espírito daquela festa.
Os velhos sentados no sofá de caviúna sorriam com as brincadeiras dos mais jovens vestidos a caráter. Nas paredes do salão os antepassados também se esforçavam para manter a aparência grave e circunspecta diante de tanta alegria. No colo da tia nonagenária, a pequena de pouco mais de um ano; ambas têm o passo vagaroso e vacilante, uma já cansada do caminhar, outra com tanto chão pela frente. São dois olhares que se cruzam, um com tanta coisa vista, outro com tanto para ver, um de saudade, o outro de surpresa. E sorriem uma para outra um sorriso de ternura.
Em volta da fogueira as pessoas ficavam olhando a imagem do fogo, que tem algo de mágico, talvez do mesmo jeito reverente e encantado que o pithecantropus ancestral ficava diante das fogueiras pré-históricas. As cores incandescentes, do vermelho vivo das brasas ao dourado das labaredas, com algum azul arisco, hipnotizam os olhares. Ninguém fala nada, apenas vivenciam aquele momento. Alguém aproveita o fato de ser uma legítima fogueira de São João para fazer um pedido ao santo, na esperança de ser logo atendido.
Mas então alguém chama para a quadrilha e os pares começam a se formar. O puxador vai à frente dos noivos marcando os passos numa confusão alegre e ruidosa. Caminho da roça, com direito à cobras e ponte quebrada, túneis e caracóis. Depois o casamento cheio de incidentes, com um noivo reticente e uma mulher abandonada com uma penca de filhos. E nessa hora, se alguém saísse no terreiro e olhasse para o céu, veria debruçado numa nuvem o severo João rindo como criança, e fazendo pirraça para os companheiros: “Olha só que beleza de festa estão fazendo em minha homenagem.” Antonio dava de ombros, ocupado com seus enamorados, enquanto o velho Pedro sorria filosoficamente.
Mal sabia João que aquela história de Pedro sobre uma súbita crise de reumatismo era desculpa para não estragar a festa em honra do amigo, adiando a chuva programada para aquele dia. Chuva que veio bonita e pesada no dia seguinte, lavando a poeira, deixando as árvores pesadas com as folhas chorosas, os marrecos em alvoroço no tanque e um monte de poças d´água no gramado. Chuva que derreteu as bandeirolas coloridas e apagou o resto da fogueira, cujas brasas morriam e se transformavam em fumaça que subia ao céu.
Boa semana! (26/06/2006)

[1] Alfredo Volpi (Lucca, 1896- São Paulo, 1988). Pintor italiano radicado em São Paulo. Suas obras ficaram famosas pelo uso de formas geométricas das bandeirinhas e mastros usadas nas festas do interior.

terça-feira, agosto 08, 2006

Felicíssima

Lendo a seção de falecimentos do Estadão, um nome chamou à minha atenção: Felicíssima. Estava lá: "Felicíssima de Jesus Alves. Aos 93 anos. Filha do sr. João Manoel Alves e de d. Delminda dos Anjos, falecidos, era solteira. O enterro realizou-se no cemitério do Santíssimo Sacramento". Fiquei imaginando que santa criatura deveria ser essa velhinha: além do nome, era de Jesus, sua mãe dos Anjos e foi enterrada no Santíssimo Sacramento. Deve estar no Céu...
Enquanto divagava, continuei a ler os outros óbitos e qual não foi o meu espanto ao ver que todas as mulheres que lá estavam (dez, ao todo), eram solteiras! A mais velha, 94 anos; a mais nova, 35. Apenas esta ainda tinha a mãe viva; as demais, órfãs. Mariana, Felicíssima, Rosalina, Célia, Amélia, Alzira, Hermínia, Aparecida, Cleufe e Maria Paz. Esta deixa filhos; as outras, nem menção de filhos ou sobrinhos. Engraçado: nenhuma teve irmãos? Quem mandou colocar o necrológio no jornal?
Rosalina Antônia Lucia foi enterrada no Quarta Parada (não seria mais apropriado Última Parada?), no Brás. Fico imaginando-a como uma zia italiana, de largos gesto, voz nasalada, mãos de fada na cozinha, morando com alguma irmã casada, cuidando dos sobrinhos, encrencando com o cunhado. Seria uma daquelas casas típicas do velho Brás: duas janelas na frente, platibanda, portãozinho de ferro batido, entrada lateral, porão e quintal com jardim e horta, além da parreira. Na sala, o retrato dos nonnos e de outros parentes, um Sagrado Coração e o relógio carrilhão.
Hermínia Kogl, cemitério da Vila Mariana, devia ser uma frau alemã, ou melhor, fraülein, visto que solteira. Morava sozinha num sobradinho que foi dos pais, com jardinzinho na frente, cheio de amores-perfeitos e begônias. Tinha um gato siamês e um velho cocker spaniel. Fazia maravilhosas äpfelstrudel e sempre levava um pedaço para a vizinha da frente, amiga de quarenta anos. Falava arrastando os erres: senhorr, florr, cantarr...
Maria Paz foi cremada; não tem lugar onde possam levar-lhe flores. Tomara que, agora, receba a paz prometida, se não a teve enquanto viva. Tornou ao pó antes de todas. Cleufe Maria Modena (nome diferente, lembra alguma divindade grega), foi enterrada no cemitério do Horto Florestal. Repousa no meio do verde, sem a barulheira dos outros cemitérios da cidade perto de ruas movimentadas.
Célia Nunes de Siqueira foi enterrado no cemitério da Consolação. Pelo jeito, quatrocentona; isso, de tradicional família paulista, apaixonou-se por um italiano, mas o pai não permitiu o casamento. Morreu solteira, mas não traiu o seu amor. Morava num casarão em Higienópolis, já sem os móveis franceses e as pratarias de família, vivendo da renda de uns aluguéis.
Curioso: até agora só imaginei histórias amenas, com anciãs bondosas. E se alguma delas fosse uma típica solteirona, amarga, de língua viperina, e tivesse verruga com pêlo na ponta? Sim, aquela que não dava sossego, sempre criticando, metendo sua colher torta em tudo. Os parentes quase soltaram rojões ao saber da morte da velha. É uma hipótese.
Mas voltemos ao ponto inicial: dona Felicíssima. Coitada, como poderia ser feliz se já havia perdido os pais, irmãos, amigos, enfim, todos de sua geração? E não ter se casado, não ter tido filhos (se bem que isso não é garantia de felicidade)? Devia ser triste, imersa em suas lembranças, talvez doente numa cama ou num asilo: triste e doente. Pobre dona Felicíssima... Fico pensando em ir ao cemitério e levar-lhe algumas flores, mas de que adiantaria?
Bem, já que estou imaginando tudo isso, vou acreditar que ela recebeu muitas flores em vida, não casou porque não quis, pois pretendentes não faltaram, teve uma família que a amou muito, teve uma vida boa e tranqüila, com saúde até o fim, e morreu como sempre viveu: FELICÍSSIMA. (1998)

Como tudo começou...

Essa foi a primeira mensagem enviada a uma pequena lista de amigos, e que originou todos os demais textos batizados de "Boa Semana". Normalmente prometidos para todos os domingos, nesse uma ano e fumaça nem sempre cumpri minha promessa, mas sempre por "motivos de força maior" (como essa expressão diz tudo sem dizer nada!).
Bem, aqui vai o primeiro, o abre-alas, sem revisão, sem crase, sem nada (Kandoca, depois vc briga comigo...).
"Bem, meus amigos, queria desejar a todos uma boa semana, que possa reverter o que não deu certo na semana que passou, que possa trazer esperança aqueles que estão sem planos, e que principalmente faça com que cada um reflita no valor da vida.
Refletir na vida não é pensar se o saldo no banco está negativo, se o chefe te enche o saco, se vc levou um fora. Refletir é dar o devido valor a coisas como amizade, afeto, família. É exorcizar fantasmas e tentar viver mais leve, mais feliz, mais próximo das pessoas pelo que elas são e não pelo que elas têm.
Reflitam.
Abraços!"

Vamos chegando, gente!

Depois de muito protelar, finalmente decidi criar um "brógui", graças ao incentivo da Kandoca, que me fez inveja com o seu "Idéias na janela".
O que é o Boa Semana? Um conjunto de crônicas que envio aos meus amigos todos os domingos, e quando não o faço, um ou dois reclamam, para exasperação dos outros oitenta e tantos...
Ora, se eu tenho um blog, nele publico meus textos e só lê quem quiser, não é verdade? E deixo de semanalmente encher a caixa postal de meus amigos com as lorotas que escrevo.
Sejam bem-vindos e espero que gostem!
Abraços e Boa Semana!
Ricardo