quarta-feira, agosto 09, 2006

BOA SEMANA (25/06/2006) Noite de São João

Diz a crendice popular que a noite de São João é a mais fria do ano, mas desta feita a voz do povo engasgou. A noite estava agradável, com um céu pintalgado de estrelas e sem o menor fiapo de nuvens. No pátio a fogueira já estava acesa e de quando em vez algum pedaço de madeira estalava e mandava mais centenas de estrelinhas pro céu. As bandeirolas coloridas, que lembravam os quadros de Volpi[1], eram agitadas pela leve brisa, fazendo um farfalhar gostoso de se ouvir.
O fogão a lenha já estava aceso e sobre a chapa de ferro ferviam o quentão e o vinho quente, que desciam queimando a garganta, fazendo tossir, piscar os olhos; santo remédio pra matar a gripe ainda no ovo. Na grande mesa uma profusão de iguarias que era de encher os olhos: cuzcuz, bolo de milho, de mandioca, batata-doce, tortas, pipoca, doces de diversas qualidades. As pessoas ficavam ao redor da mesa, indecisas sobre qual daquelas gostosuras experimentar primeiro. Cada um trazia sua contribuição no velho hábito do mutirão, que em verdade era o espírito daquela festa.
Os velhos sentados no sofá de caviúna sorriam com as brincadeiras dos mais jovens vestidos a caráter. Nas paredes do salão os antepassados também se esforçavam para manter a aparência grave e circunspecta diante de tanta alegria. No colo da tia nonagenária, a pequena de pouco mais de um ano; ambas têm o passo vagaroso e vacilante, uma já cansada do caminhar, outra com tanto chão pela frente. São dois olhares que se cruzam, um com tanta coisa vista, outro com tanto para ver, um de saudade, o outro de surpresa. E sorriem uma para outra um sorriso de ternura.
Em volta da fogueira as pessoas ficavam olhando a imagem do fogo, que tem algo de mágico, talvez do mesmo jeito reverente e encantado que o pithecantropus ancestral ficava diante das fogueiras pré-históricas. As cores incandescentes, do vermelho vivo das brasas ao dourado das labaredas, com algum azul arisco, hipnotizam os olhares. Ninguém fala nada, apenas vivenciam aquele momento. Alguém aproveita o fato de ser uma legítima fogueira de São João para fazer um pedido ao santo, na esperança de ser logo atendido.
Mas então alguém chama para a quadrilha e os pares começam a se formar. O puxador vai à frente dos noivos marcando os passos numa confusão alegre e ruidosa. Caminho da roça, com direito à cobras e ponte quebrada, túneis e caracóis. Depois o casamento cheio de incidentes, com um noivo reticente e uma mulher abandonada com uma penca de filhos. E nessa hora, se alguém saísse no terreiro e olhasse para o céu, veria debruçado numa nuvem o severo João rindo como criança, e fazendo pirraça para os companheiros: “Olha só que beleza de festa estão fazendo em minha homenagem.” Antonio dava de ombros, ocupado com seus enamorados, enquanto o velho Pedro sorria filosoficamente.
Mal sabia João que aquela história de Pedro sobre uma súbita crise de reumatismo era desculpa para não estragar a festa em honra do amigo, adiando a chuva programada para aquele dia. Chuva que veio bonita e pesada no dia seguinte, lavando a poeira, deixando as árvores pesadas com as folhas chorosas, os marrecos em alvoroço no tanque e um monte de poças d´água no gramado. Chuva que derreteu as bandeirolas coloridas e apagou o resto da fogueira, cujas brasas morriam e se transformavam em fumaça que subia ao céu.
Boa semana! (26/06/2006)

[1] Alfredo Volpi (Lucca, 1896- São Paulo, 1988). Pintor italiano radicado em São Paulo. Suas obras ficaram famosas pelo uso de formas geométricas das bandeirinhas e mastros usadas nas festas do interior.

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