terça-feira, agosto 08, 2006

Felicíssima

Lendo a seção de falecimentos do Estadão, um nome chamou à minha atenção: Felicíssima. Estava lá: "Felicíssima de Jesus Alves. Aos 93 anos. Filha do sr. João Manoel Alves e de d. Delminda dos Anjos, falecidos, era solteira. O enterro realizou-se no cemitério do Santíssimo Sacramento". Fiquei imaginando que santa criatura deveria ser essa velhinha: além do nome, era de Jesus, sua mãe dos Anjos e foi enterrada no Santíssimo Sacramento. Deve estar no Céu...
Enquanto divagava, continuei a ler os outros óbitos e qual não foi o meu espanto ao ver que todas as mulheres que lá estavam (dez, ao todo), eram solteiras! A mais velha, 94 anos; a mais nova, 35. Apenas esta ainda tinha a mãe viva; as demais, órfãs. Mariana, Felicíssima, Rosalina, Célia, Amélia, Alzira, Hermínia, Aparecida, Cleufe e Maria Paz. Esta deixa filhos; as outras, nem menção de filhos ou sobrinhos. Engraçado: nenhuma teve irmãos? Quem mandou colocar o necrológio no jornal?
Rosalina Antônia Lucia foi enterrada no Quarta Parada (não seria mais apropriado Última Parada?), no Brás. Fico imaginando-a como uma zia italiana, de largos gesto, voz nasalada, mãos de fada na cozinha, morando com alguma irmã casada, cuidando dos sobrinhos, encrencando com o cunhado. Seria uma daquelas casas típicas do velho Brás: duas janelas na frente, platibanda, portãozinho de ferro batido, entrada lateral, porão e quintal com jardim e horta, além da parreira. Na sala, o retrato dos nonnos e de outros parentes, um Sagrado Coração e o relógio carrilhão.
Hermínia Kogl, cemitério da Vila Mariana, devia ser uma frau alemã, ou melhor, fraülein, visto que solteira. Morava sozinha num sobradinho que foi dos pais, com jardinzinho na frente, cheio de amores-perfeitos e begônias. Tinha um gato siamês e um velho cocker spaniel. Fazia maravilhosas äpfelstrudel e sempre levava um pedaço para a vizinha da frente, amiga de quarenta anos. Falava arrastando os erres: senhorr, florr, cantarr...
Maria Paz foi cremada; não tem lugar onde possam levar-lhe flores. Tomara que, agora, receba a paz prometida, se não a teve enquanto viva. Tornou ao pó antes de todas. Cleufe Maria Modena (nome diferente, lembra alguma divindade grega), foi enterrada no cemitério do Horto Florestal. Repousa no meio do verde, sem a barulheira dos outros cemitérios da cidade perto de ruas movimentadas.
Célia Nunes de Siqueira foi enterrado no cemitério da Consolação. Pelo jeito, quatrocentona; isso, de tradicional família paulista, apaixonou-se por um italiano, mas o pai não permitiu o casamento. Morreu solteira, mas não traiu o seu amor. Morava num casarão em Higienópolis, já sem os móveis franceses e as pratarias de família, vivendo da renda de uns aluguéis.
Curioso: até agora só imaginei histórias amenas, com anciãs bondosas. E se alguma delas fosse uma típica solteirona, amarga, de língua viperina, e tivesse verruga com pêlo na ponta? Sim, aquela que não dava sossego, sempre criticando, metendo sua colher torta em tudo. Os parentes quase soltaram rojões ao saber da morte da velha. É uma hipótese.
Mas voltemos ao ponto inicial: dona Felicíssima. Coitada, como poderia ser feliz se já havia perdido os pais, irmãos, amigos, enfim, todos de sua geração? E não ter se casado, não ter tido filhos (se bem que isso não é garantia de felicidade)? Devia ser triste, imersa em suas lembranças, talvez doente numa cama ou num asilo: triste e doente. Pobre dona Felicíssima... Fico pensando em ir ao cemitério e levar-lhe algumas flores, mas de que adiantaria?
Bem, já que estou imaginando tudo isso, vou acreditar que ela recebeu muitas flores em vida, não casou porque não quis, pois pretendentes não faltaram, teve uma família que a amou muito, teve uma vida boa e tranqüila, com saúde até o fim, e morreu como sempre viveu: FELICÍSSIMA. (1998)

3 comentários:

Anônimo disse...

Ri...

Adorei sua idéia de postar em um blog, sempre continuearei lendo suas lindas palavras!!!

Saudades de vc!!!!

Beijos

Anônimo disse...

Oi RIcardo..
Adorei sua ideia e passei aqui pra dizer que msm que nao comento eu leio seus e mails e adoro.. Msm estando longe adoro ler td...
Bjinhos

Kandy disse...

Este é o meu texto preferido. Lindo! Superpoético, doce, profundo, de uma sensibilidade sem igual. Dá vontade de conhecer cada uma dessas personagens e convidá-las para tomar um chá, quando, então, teríamos a oportunidade de conversar, conversar e conversar por horas a fio.
;-)