domingo, outubro 15, 2006

Entrementes

Meu avô era daqueles portugueses antigos que quebra, mas não torce, e de poucas palavras. Na minha infância, sua presença sempre inspirou medo, medo de seus gritos tonitruantes, de seu olhar severo, sempre pronto a repreender. Com o passar dos anos nossas relações se estreitaram, e muitas vezes ouvi histórias de seu tempo de moço, das dificuldades por que passou. Algumas ficaram marcadas com maior relevo em minha lembrança. Uma era a de seu avô (meu trisavô!), um pobre lavrador chamado Teodósio...

Pois na segunda metade do século XIX a vida rural em Portugal ainda se assemelhava ao período feudal, quando camponeses trabalhavam quase que por um prato de comida. A fome rondava e as doenças, como tuberculose e sífilis, ceifavam vidas no atacado ou deixavam apenas sombras humanas vegetando uma existência miserável.

Esse meu trisavô Teodósio era mais um nessa massa anônima. Trabalhava numa quinta – que é o nome que os sítios têm em Portugal –, e dava-se por feliz por ter o que comer em troca de seu suor. Mas diz o povo que a necessidade é mãe da criatividade, e esse meu antepassado é prova viva, quer dizer, morta, do provérbio. Ah, vocês entenderam...

Num dia de muita chuva, quando parecia impossível trabalhar na lavoura, ele estava num canto da cozinha, aquentando perto do fogão à lenha. O beiral da casa chorava suas lágrimas, esburacando o chão em pequenas poças. Surge o patrão, corre os olhos pela paisagem, olha o céu, e declara:

- É, Teodósio, acho que hoje não podes trabalhar, pelo jeito a chuva não cessa. Melhor ires embora.

Ora, se ele se fosse perdia o almoço, e era pr´amor da comida que ali estava. Não podia ir-se embora.

- Veja lá, meu senhor, parece que clareia pros lados das Matas. Vou aqui a cortar uns cavacos pra o fogo, entrementes o tempo melhora...

O patrão torcia o nariz, mas não respondia, e lá ficava o ladino Teodósio, cavaqueando. Depois de almoçar, esticava os braços; aí se chegava junto à porta, olhava o céu e dizia candidamente:

- Pois acho que meu senhor tem razão: hoje o dia está perdido. Mas de hora em hora, Deus melhora. Até amanhã!

E lá se ia o bom Teodósio, sem nunca suspeitar que mais de um século depois alguém ainda se lembraria de seu nome: Teodósio Pinto Ferreira. Dele não ficou nenhum retrato, nenhum documento, nada além dessa história. Aliás, a única.

Entrementes, a vida segue...

Um comentário:

Kandy disse...

Você fez construções belíssimas (como "as lágrimas esburacando o chão em poças") e, pra variar, usou palavras que só o dicionário e você sabem, né? ;-)
Que bom que você tem uma memória assim. São histórias como essa que nos fazem ser quem somos.