sexta-feira, setembro 07, 2007

Magnífico

A cada dia que passava sentia a idade pesar. Já não entendia o porquê ter vivido tanto e nem o motivo disso não ter fim. Não temia a morte. Aliás, não temia mais nada. Prestes a completar 100 anos, pra ele as coisas já não tinham mais graça: a comida perdera o sabor, há anos perdera o olfato e com ele tantos aromas agradáveis. Os olhos pareciam ter dezenas de véus que borravam o que quer que ele olhasse. Já fazia mais de 20 anos que não lia um livro, a televisão era apenas algo que servia para encher de borrões barulhentos as intermináveis horas do dia.


Desde que a morte da mulher os parentes contrataram diversas enfermeiras e empregadas, mas que não duravam muito; ninguém tem paciência com velhos nem respeitam suas vontades. O jardim, que sempre atraíra a atenção de quem passava pela rua, hoje era um pedaço de terra batida onde o mato ralo dividia o espaço com um jasmim-do-cabo remanescente. A parreira foi cortada por uma das empregadas, por decisão própria, pois não aguentava mais varrer as folhas que sujavam o quintal. Há muito que ele não apitava mais nada nem sequer o consultavam mais.


Muito tempo fazia que haviam tirado todos os tapetes da casa e alguns móveis foram levados para o porão dando espaço para que a cadeira de rodas pudesse circular livremente. O antigo escritório se transformou em quarto e a parte superior da casa era apenas lembrança em sua memória; há mais de dez anos que não subia as escadas. Passava a maior parte do dia na varanda vendo vultos que passavam apressados. Raras vezes ouvia alguém gritar seu nome – Bom dia, seu João – e ele respondia com um gesto vago e a voz débil. Já nem sabia quem era. Todos os seus amigos tinham morrido, não havia mais ninguém de seu tempo. Nos raros momentos de bom humor dizia que não via a hora de mudar-se para São Paulo; na verdade, se referia ao nome do cemitério onde estava o jazigo da família.


Num dia qualquer de maio alguns sobrinhos vieram dizer que faltava um mês para seu aniversário de 100 anos e que eles fariam um almoço para reunir a família e comemorar a data. O velho nem teve ânimo pra dizer nada, apenas sacudiu a cabeça num gesto que tanto podia significar obrigado como vão pro diabo.


Mas pensou que seria divertido morrer na véspera, só para estragar a festa. Riu-se da idéia, e uma das sobrinhas, já velha também, achou que ele estava animado:


- Olha só, ele gostou da festa.


Como a família era menor que o quintal da casa, resolveram fazer ali mesmo a festa no lugar de alugar um salão; só contrataram um serviço de buffet com dois garçons. Na semana que antecedeu o aniversário o movimento foi grande, trouxeram mais um faxineira, arrastaram a mobília, espanaram o pó dos quadros e livros. Até mesmo o relógio de parede que há anos não funcionava, pois ninguém mais queria dar corda nele, pois até esse estava tinindo com óleo de peroba e batendo suas badaladas contente.


Algum ingênuo sugeriu pintar a casa, isso ele ouviu, mas os ouvidos já não conseguiram escutar a resposta, decerto dizendo que era bobagem pois logo que o velho batesse com as botas o negócio era vender a casa pra uma construtora, que botaria tudo abaixo e no lugar ergueria um edifício com o nome pomposo em inglês ou francês pra dar status. Queria tanto morrer e com ele levar todas as lembranças e histórias...


No domingo aprazado a campainha não parava de tocar. Um monte de gente que ele mal conhecia e que o cumprimentava, elogiando sua disposição e longevidade. Ora, parabenizar um caco de gente como ele? Pior de tudo eram as sobrinhas que lhe davam beijos borrados; imaginava-se com cara de palhaço por conta do batom melado daquelas velhuscas que não se davam conta do rídiculo.


Depois de todo aquele alvoroço do chegar e abraçar e beijar, teve o almoço que todos elogiavam, mas que para ele tinha gosto de mingau de aveia. Era triste envelhecer, dia a dia perdia os pequenos prazeres, restando apenas o viver metabolicamente como se fosse uma velha árvore que já não produz mais nada.


Após o almoço teve o bolo, cantaram parabéns e pediram que ele fizesse discurso. Ergueu-se na cabeceira da grande mesa e falou algumas palavras, educadamente agradecendo a todos, mas que o que mais desejava era ir pra terra dos pés juntos, o que motivou acalorados protestos dos convidados.


Foi aí que um sobrinho-neto trouxe o velho gramofone que ele ganhou do sogro de presente de casamento. Houve um rebuliço, todo mundo querendo ver e o filho da Eglantina, um que era metido a radialista, dava explicações como se aquilo tudo fosse um circo de cavalinhos.


- Meu Deus, viver tanto pra virar atração circense...


Apesar dos ouvidos moucos, ainda conseguiu perceber que tocavam As quatro estações e lembrou-se de quantas vezes tinha dançado ao som daquela música.


Aí o pseudo-radialista começou com outro palavrório, apontando um menino que quase morria de vergonha, e veio colocando uns fios no ouvido do velho. Nossa, podia escutar nitidamente, apesar de não conseguir distinguir que raio de música era aquela. Mas era tão agitada que ele gostou, e soltou um sincero “Magnífico” que fez com que todos rissem com ele.


Foi nesse momento que um menino ficou em sua frente e se olharam nos olhos. Ele estendeu a mão para fazer um afago no jovem, mas este rapidamente bateu a mão contra sua mão espalmada e disse algo que o velho não pode entender. Porém isso não fez diferença, pois naquele instante, por uma estranha magia que raras vezes a Vida mostra, os dois estavam ligados a despeito de tantos anos que havia entre eles. Eram elos da mesma corrente.


(se você quiser saber o outro lado desta história, clique na última palavra do texto)

5 comentários:

Anônimo disse...

Que coisa, Ricardo!... É isso aí, mas é tão triste...

Anônimo disse...

Eu sempre acho que nós nos damos conta que estamos envelhecendo usando os outros como espelhos. Quando nossos amigos começam a casar, vc começa a pensar que está na hora de dar jeito na vida. Qdo começam a ter filhos, a idéia se prolifera rapidamente no grupo. Imagino que ver os amigos morrerem também dá a mesma sensação. Que se está fazendo "hora extra" por aqui.
Eu gostei de tudo, mas principalmente dos dois textos simultaneos nos dois blogs. Genial!
BJS

Fábio Mayer disse...

Que texto bonito, adorei os dois textos, sensacionais!!!

Anônimo disse...

Acredito que a parte mais difícil quando envelhecemos é ser ignorado, ter nossas vontades anuladas e principalmente ter nossa privacidade "invadida", mas por outro lado somos "consolados"pelas nossas memórias. Parabéns pelo blog.

Ana Ramon disse...

Olá Ricardo. Vim a correr para espreitar o novo blog. Muito bonito. E o convite ao descanso tem uma foto que traduz uma enorme paz. A tua foto é que está fechada. E desta vez até os textos têm uma cor que não dificulta a leitura. Parabéns!
Agora sobre o velho o João, estava a ler-te e a pensar que quando fores velhinho assim, não te vais surpreender porque penso que apanhaste muito bem a maneira de sentir dos mais idosos. Essa invisibilidade que eles criam, sem querer. Essa visibilidade que em certos momentos eles provocam, também sem querer.
Um beijinho muito grande