domingo, maio 25, 2008

Das coisas que me acontecem...

Para Ana Ramón, amiga que, do outro lado do Atlântico,
compartilha comigo as experiências surreais com os bichos.


Neste mundo existem pessoas que atraem para si situações pitorescas, fora do ordinário cotidiano. São aquelas pessoas que contam histórias inverossímeis, de fazer o ouvinte olhar com rabo dos olhos, mas inquestionavelmente reais. Pois eu me incluo nesse grupo, claro que vocês já devem ter percebido isso com meia dúzia de coisas que contei aqui. Hoje me aconteceu mais uma, digna de figurar entre as “Dez mais” da minha vida.


Haja visto que a maioria das pessoas sensatas tem como animal de estimação um cão, um gato ou um passarinho - as mais sensatas mesmo não têm nenhum. Como não me incluo nesse grupo, no quintal de casa cantam galos, cacarejam galinhas, grasnam gansos e marrecos e pavoneiam-se pavões. Isto, por si só, já bastaria pra dar uma medida da minha excentricidade, mas quando quero provar alguma coisa vou até o fim.


Acontece que nessa fauna emplumada existem sujeitos que odeiam viver encerrados atrás das telas e grades do galinheiro; assim que pilham uma brecha, lá fogem eles e começam a reinar pela vizinhança. Esses desajustados sociais são os pavões – e principalmente as pavoas. Pois foi exatamente uma delas que causou o incidente que vou narrar hoje.


Na quinta-feira, feriado de Corpus Christi, não havia ninguém em casa, e foi quando sucedeu o infausto acontecimento. Aproveitando-se da casa vazia – quando os gatos saem os ratos fazem a festa - , a danada resolveu escapulir. O que ocorre é que se deu mal na tentativa de fuga, e ficou com a perna presa na tela do galinheiro. Sabe Deus quanto tempo a pobre se debateu na tentativa de se desvencilhar da armadilha montada por ela mesma. Quando minha mãe chegou ouviu um bater de asas desesperado e foi olhar o que havia. Deu com a cena que descrevi, e a sorte foi que um dos meus irmãos chegou a seguir, e conseguiu soltar a coitada. Mas o estrago já estava feito: havia fraturado a perna, e a coisa foi feia. Como a bichinha estava com muita dor – sim, ela gritava, e só quem já ouviu gritos de um pavão sabem o que é – minha mãe começou a tentar encaixar o osso. Mexe e remexe, em dado momento a criaturinha sossegou. Então, com ajuda de meu irmão, fizeram uma tala com taquaras, gaze e esparadrapo e a deixaram em paz.


Isso tudo foi no finalzinho da tarde, eu não estava em casa. Quando cheguei ninguém falou nada: minha mãe proibiu comentários, sabia que eu iria ficar fulo da vida, praguejando contra a pavoa destrambelhada. E foi isso mesmo quando ela me contou na manhã de sexta-feira, visto que precisávamos levar a coitada da pavoa ao veterinário. Descobrimos um que atendia aves, e lá nos fomos para Osasco, uns vinte e tantos quilômetros daqui de casa. Para que a pavoa não se debatesse eu a enfiei dentro de uma camiseta, que é a melhor maneira de se carregar frangos, patos e semelhantes: passa-se o pescoço do bicho pela manga e com o restante enrola-se o corpo, prendendo bem as asas. Isto feito, partimos em demanda do médico, mas foi viagem perdida: o raio do doutor que atendia aos bípedes emplumados só chegava às 14:00 horas. Bem, vamos dar meia-volta e...

- Cáspite!!! (não foi isso que falei, mas o decoro e o respeito às famílias que me lêem obrigam-me a distorcer os fatos). A diaba havia me borrado a calça! Minha mãe ria às bandeiras despregadas. Suspirei e voltamos pra casa.


Depois do almoço voltei ao consultório, dessa vez sozinho; quer dizer, sozinho não, que a doente ia comigo. Ela estava num sossego de dar gosto: depois que lhe vesti a camisa, ficou bem quietinha, apenas mexendo os curiosos olhos pra todo lado:

- Olha só a confusão que você aprontou!

- ...

- Não adianta se fazer de desentendida, não! Tá aí, toda quebrada...

- ...

- Macaco que muito pula leva chumbo, nunca ouviu falar?

- ...

- Humpf!


De volta à clínica, fui alvo de todos os olhares, quer dos cães e gatos, quer de seus donos. Afinal, não é todo dia que se vê um sujeito com um avejão debaixo do braço, inda mais se o tal avejão estiver usando camiseta de grupo escolar...


Sentei para preencher a ficha, pererequei pra conseguir segurar a pavoa e tirar os documentos da carteira; depois de anotar meus dados, a atendente perguntou:

- Qual o nome do animal?

- Nome? Ela não tem nome.

- Ah, preciso colocar na ficha do paciente.

- Hum... Coloca aí: Peste!

- Ai, moço... Tadinha...

- Tadinha? Peste sim, olha só o que ela aprontou... Põe Peste mesmo.

- Ah, desanimou a moça. Então Pestinha, vai?

Farto daquilo, aquiesci com a cabeça:

- Hum-hum.

- Pode esperar o doutor chamar.


Enquanto me dirigia em busca de lugar para sentar todos os olhares me acompanhavam. Uma velhinha a um canto, seca como um maracujá e dona de um vira-latas esfumaçado, perguntou se era um pavão.

- Pavoa, respondi com um meio sorriso.

- Ah. E o que ela tem?

- Quebrou a perna, e antes que a velhinha perguntasse como, já contei o acontecido.


Nisso entra uma mulher gorda; mas imagine alguém muito gorda; coloque mais duas arrobas* e você está vendo a tal mulher, que surge sendo arrastada por um enlouquecido labrador resfolegante. O cachorro assustou um gato, fez xixi no balcão, cheirou – e irritou – o cachorro esfumaçado, pulou no aquário, fazendo as recepcionistas levarem as mãos à cabeça. Eu segurei firme a pavoa, só faltava ela sair voando pela clínica; Pestinha ficou ressabiada, eriçou as penas da crista, mas não passou disso. Enfim a gorda estacionou e o cachorro ficou menos inquieto.


Foi aí que surgiu um médico surgiu no corredor e chamou o paciente:


- Lilu!


“Ai meu Deus! Eles chamam pelo nome do bicho! Tô frito...”. Passaram-se alguns minutos e ouço: “Pestinha!”, enquanto olhares de reprovação me fulminam...


Pra resumir a história: levei a pavoa até o consultório, depois fomos tirar radiografia – e tive que me paramentar com roupa anti-radiação - , até o diagnóstico:

- Bem, ela realmente teve uma fratura séria, e existem duas opções: cirurgia, com colocação de um pino, ou simplesmente imobilizar a perna com uma tala, que permanecerá por trinta dias...

Suspirei e perguntei qual o valor de cada um dos procedimentos:

- A cirurgia em torno de 350 reais, a tala fica uns 100.

Aí foi minha vez de sentir dor. Devo ter feito uma cara bem compungida, pois ele continuou:

- Olha, no caso dela acho que a cirurgia é dispensável. Ela é nova, está saudável e vejo que o senhor é cuidadoso.


Autorizei os procedimentos, ele disse que ela ficaria ali e que eu voltasse buscá-la no dia seguinte. Aproveitei pra trocar a camisa suja enquanto esperava alguém que iria levá-la para o ambulatório. Apareceu um molecote com cara de palerma, perguntou se aquilo era uma galinha d´Angola, pegou-a de mal jeito, quase quebrou a perna dela novamente. Suspirei. Assinei a papelada e paguei a conta: 235 reais... Peste!


Sábado, voltei à clínica para buscar a infeliz; tomei um chá-de-banco de meia hora, ao cabo da qual fiquei sabendo que não poderia levar Pestinha pra casa. O motivo? Ela havia entornado o pote d´água e molhado o gesso. Minha vontade foi de fazer uma eutanásia ali mesmo, mas me contive. Tinha outros compromissos, não poderia esperar refazerem tudo novamente. Teria que voltar no domingo à tarde.


Voltei pra casa refletindo sobre a insignificância humana diante dos desígnios misteriosos do destino e pensando em procurar na internet alguma receita de pavão assado...


Domingo, após o almoço, liguei para saber se não haveria outro imprevisto e falei com o veterinário; disse que eu poderia ir buscá-la. Saí de casa numa animação sem tamanho, temendo ser vítima de nova surpresa preparada por minha pavoa delinquente.


Esperei durante quarenta minutos – duas emergências, coincidentemente intoxicação por inseticida – até que fui chamado:


- O dono da Pestinha!


Sob olhares da assistência, fui buscar a criaturinha que tanto trabalho me deu. Ela estava ótima, com a perna engessada. Coloquei-lhe uma camisa limpa e viemos pra casa. Agora está lá quietinha, sozinha num viveiro. Vamos ver o que apronta durante os 30 dias em que deverá ficar de molho. Novas notícias a qualquer momento em boletim extraordinário.

E Boa Semana!


* Arroba: antiga medida equivalente a 15 quilos. Hoje só serve pra endereço de correio eletrônico.

7 comentários:

Fábio Mayer disse...

Bem,

EU teria feito tudo exatamente do mesmo jeito e gastado o mesmo dinheoiro, nem que tivesse que entrar no cheque especial para tanto.

Se isso serve de consolo... eu também não sou uma pessoa exatamente sensata... mas adoro animais!

Ana Ramon disse...

Risos + Risos
Tardas em escrever mas quando o fazes, sai coisa fina!
Achei muita piada ao olhar da tua Pestinha nitidamente desconfiado enquanto enrolada nessa roupa estranhíssima.
A Mariana e o Jacob vivem à solta. Não se afastam muito da zona da capoeira e vejo-os muitas vezes em cima do telhado do estábulo. Ela agora começou a pôr e nós recolhemos os ovos porque os nossos gatos aprenderam a partir ovos para comer . Mas julgo que ela não gosta nada desse procedimento porque já mudou 4 vezes de ninho. Nunca tive pavões e está a ser uma experiência engraçada. Os gritos deles incomodam um bocado, é verdade.
Mas fiquei muito contente por a teres levado ao veterinário. Mesmo que nos tentes convencer que a levaste debaixo de uma fúria quase capaz de lhe apertar o gorgomilo (e que descreves de uma forma tão hilariante), só uma pessoa de doce coração se dava a todo esse trabalho e despesa.
Por tudo isso, um grande abraço com beijinhos

Anônimo disse...

Tadinha de Pestinha! Tendo de se tratar em um consultório tão alienígena a suas convicções, a seu way of life...
Não pense em Pestinha assada, coitadinha! Você ganhou uma amiga pro resto da vida (dela).

Anônimo disse...

Que peste!

Anônimo disse...

G-a-r-g-a-l-h-a-d-a-s!!!!!!
Simplesmente impagável a experiência! Não, não estou defendendo a "Pestinha", sei que você teve custos, mas realmente achei a situação muito "nossa cara". Afinal, você me conhece muito bem, e se tem algo que faço de melhor, é também participar e executar esse tipo de peripéricia...Agora, o nome foi lamentável...rs..rs..Podia ter lembrado das nossas idéias (não vou escrever porque pode dar processo...rs);). Amei de verdade, você continua maravilhoso para escrever, e é impossível não acompanhar passo a passo as cenas que descreve! Milhoes de beijos e saudades!

Anônimo disse...

E como está a Peste depois desses dias?

Kandy disse...

Melhorou, o bicho? Me recuso a chamá-la pelo nome que lhe deram. Ser uma pavoa, quebrar a perna tentando fugir e ainda por cima ficar enrolada numa camiseta já é mais do que ridículo. Não precisa enfatizar com nome próprio infeliz, coitada! Espero que ela esteja plenamente recuperada!