Essa é uma história que meu padrinho me contava quando eu era criança, e por isso mesmo ficou gravada na memória, perdida no fundo de alguma das muitas gavetas que trago dentro da cachola... Era sobre um parente dele, o Tio Mocchi, e da promessa que ele fez pra São João.
Esse tio Mocchi veio pro Brasil ainda no século XIX, nas grandes levas de imigrantes que chegavam para substituir o braço negro nas lavouras de café em São Paulo. Não sei muito sobre o que fez, como enricou, pois isso nunca me foi contado; o que sei é que no período que interessa pro caso em questão, posterior à crise de 1929, ele já tinha comprado a fazenda em que trabalhou como colono. Casos como esse existiram diversos, de outrora ricos quatrocentões que perderam as fazendas em hipotecas ou as venderam para seus antigos empregados. Pois o tio Mocchi se afazendou na região da Araraquarense e continuou a plantar café.
Certo ano uma daquelas queimadas de agosto acabou por atingir a mata que existia por detrás do cafezal, lá nas divisas da fazenda. Juntando os camaradas, tio Mocchi foi preparar um aceiro e assim tentar preservar a plantação do incêndio. Ah, vocês não sabem o que é aceiro? Pobre gente da cidade...
Aceiro é o terreno que se limpa de mato para evitar que o fogo se alastre de um ponto para o outro. Na falta de palavra melhor, seria uma espécie de trincheira para barrar as chamas. Um bom aceiro deve ser feito contra o vento, caso contrário o vento carrega fagulhas e é trabalho perdido.
Depois deste breve interregno cultural, voltemos ao velho fazendeiro. No afã de apagar o incêndio que consumia grandes cambarás e centenárias perobas, tio Mocchi acabou por embrenhar-se mais que o seguro e recomendável na mata. Em poucos segundos, no tempo em que o demo esfrega um olho, ele viu-se preso num grande curral de fogo. Como sair dali? O fogo já roncava bravo nas touceira de bambu, galhos roídos pelo fogo despencavam das altas copas como tochas incendiárias, a fumaça queimava a garganta, o calor ficava insuportável.
Já se dando por perdido, só lhe restava mesmo apelar para o Céu. De mãos postas, pediu a São João que o livrasse daquela fogueira infernal. Em troca, todos os anos, pelo resto de seus dias, ele faria uma festa dia 24 de junho, em homenagem ao santo querido.
Sabe-se lá se por compaixão ou interesse na festa, o santo resolveu tirar o pobre daquela situação tão terrível. Não me perguntem como, por favor, que isso não sei. Poderia muito bem inventar uma bela potoca, com lances de suspense e emoção já que nenhum de vocês conhece o caso, mas recuso-me a fantasiar cenas em respeito à memória do pobre tio Mocchi.
Sei que ele saiu, cada qual imagine como se deu isso ao sabor de sua própria imaginação e preferência; saiu sim e cumpriu a promessa: todo ano naquele dia de junho convidava a vizinhança toda, dos fazendeiros aos colonos, e fazia aquela festança, com tudo a que o bom santo tinha direito.
Ora, devem estar vocês perguntando: fazer uma festa, ele que era fazendeiro, onde está o pitoresco disso? Festa basta ter dinheiro e gente animada que o caso se resolve. Onde o mistério da coisa, aquele que prendeu a atenção de cada um até este trecho, quando coisa mais interessante há nesse mundo de Nosso Senhor?
Acontece que naquele tempo em que estave preso no meio das chamas negociando com São João, diálogo esse que só podemos imaginar, o velho Mocchi recebeu uma graça especial: a de ser imune ao fogo!
Sim, meus senhores, isso mesmo! Ficou de corpo fechado pro fogo, graças à combinação com o santo primo de Jesus, que comia gafanhotos no deserto e chamava de serpentes aos que se diziam piedosos. São João é conhecido pelo pavio curto, e talvez por isso mesmo tio Mocchi tenha se lembrado dele. Afinal, São Francisco devia estar ocupado em salvar os pobres animais do fogo, enquanto Santo Antonio se via atarantado atendendo preces da esposas e noivas cujos homens se batiam contra o incêndio. Sobrou João, e esse não negou fogo.
Para provar que era verdadeira essa combinação com o santo, quando o velho carrilhão da sala de jantar dava as doze badaladas da noite, tio Mocchi mandava um caboclo desmanchar a enorme fogueira e espalhar a brasa aí num carreiro de uns cinco metros. Como no circo quando pára a música, todos ficavam atentos à cena: o velho descalçava as botas, tirava as meias, e murmurando suas orações, ia pisando naquele rubro braseiro sem mexer um músculo da face que não fossem os lábios rezando. Ia devagar, sem pressa alguma, até findar o caminho. Dizem que outras pessoas também caminhavam nas brasas como ele, iam até lá pagar promessas.
Si è vero? Não sei, vendo o peixe pelo preço que me passaram... Sobre a veracidade da história, passarei pisando em brasas, não como tio Mocchi, mas no modo figurado da coisa...
Esse tio Mocchi veio pro Brasil ainda no século XIX, nas grandes levas de imigrantes que chegavam para substituir o braço negro nas lavouras de café em São Paulo. Não sei muito sobre o que fez, como enricou, pois isso nunca me foi contado; o que sei é que no período que interessa pro caso em questão, posterior à crise de 1929, ele já tinha comprado a fazenda em que trabalhou como colono. Casos como esse existiram diversos, de outrora ricos quatrocentões que perderam as fazendas em hipotecas ou as venderam para seus antigos empregados. Pois o tio Mocchi se afazendou na região da Araraquarense e continuou a plantar café.
Certo ano uma daquelas queimadas de agosto acabou por atingir a mata que existia por detrás do cafezal, lá nas divisas da fazenda. Juntando os camaradas, tio Mocchi foi preparar um aceiro e assim tentar preservar a plantação do incêndio. Ah, vocês não sabem o que é aceiro? Pobre gente da cidade...
Aceiro é o terreno que se limpa de mato para evitar que o fogo se alastre de um ponto para o outro. Na falta de palavra melhor, seria uma espécie de trincheira para barrar as chamas. Um bom aceiro deve ser feito contra o vento, caso contrário o vento carrega fagulhas e é trabalho perdido.
Depois deste breve interregno cultural, voltemos ao velho fazendeiro. No afã de apagar o incêndio que consumia grandes cambarás e centenárias perobas, tio Mocchi acabou por embrenhar-se mais que o seguro e recomendável na mata. Em poucos segundos, no tempo em que o demo esfrega um olho, ele viu-se preso num grande curral de fogo. Como sair dali? O fogo já roncava bravo nas touceira de bambu, galhos roídos pelo fogo despencavam das altas copas como tochas incendiárias, a fumaça queimava a garganta, o calor ficava insuportável.
Já se dando por perdido, só lhe restava mesmo apelar para o Céu. De mãos postas, pediu a São João que o livrasse daquela fogueira infernal. Em troca, todos os anos, pelo resto de seus dias, ele faria uma festa dia 24 de junho, em homenagem ao santo querido.
Sabe-se lá se por compaixão ou interesse na festa, o santo resolveu tirar o pobre daquela situação tão terrível. Não me perguntem como, por favor, que isso não sei. Poderia muito bem inventar uma bela potoca, com lances de suspense e emoção já que nenhum de vocês conhece o caso, mas recuso-me a fantasiar cenas em respeito à memória do pobre tio Mocchi.
Sei que ele saiu, cada qual imagine como se deu isso ao sabor de sua própria imaginação e preferência; saiu sim e cumpriu a promessa: todo ano naquele dia de junho convidava a vizinhança toda, dos fazendeiros aos colonos, e fazia aquela festança, com tudo a que o bom santo tinha direito.
Ora, devem estar vocês perguntando: fazer uma festa, ele que era fazendeiro, onde está o pitoresco disso? Festa basta ter dinheiro e gente animada que o caso se resolve. Onde o mistério da coisa, aquele que prendeu a atenção de cada um até este trecho, quando coisa mais interessante há nesse mundo de Nosso Senhor?
Acontece que naquele tempo em que estave preso no meio das chamas negociando com São João, diálogo esse que só podemos imaginar, o velho Mocchi recebeu uma graça especial: a de ser imune ao fogo!
Sim, meus senhores, isso mesmo! Ficou de corpo fechado pro fogo, graças à combinação com o santo primo de Jesus, que comia gafanhotos no deserto e chamava de serpentes aos que se diziam piedosos. São João é conhecido pelo pavio curto, e talvez por isso mesmo tio Mocchi tenha se lembrado dele. Afinal, São Francisco devia estar ocupado em salvar os pobres animais do fogo, enquanto Santo Antonio se via atarantado atendendo preces da esposas e noivas cujos homens se batiam contra o incêndio. Sobrou João, e esse não negou fogo.
Para provar que era verdadeira essa combinação com o santo, quando o velho carrilhão da sala de jantar dava as doze badaladas da noite, tio Mocchi mandava um caboclo desmanchar a enorme fogueira e espalhar a brasa aí num carreiro de uns cinco metros. Como no circo quando pára a música, todos ficavam atentos à cena: o velho descalçava as botas, tirava as meias, e murmurando suas orações, ia pisando naquele rubro braseiro sem mexer um músculo da face que não fossem os lábios rezando. Ia devagar, sem pressa alguma, até findar o caminho. Dizem que outras pessoas também caminhavam nas brasas como ele, iam até lá pagar promessas.
Si è vero? Não sei, vendo o peixe pelo preço que me passaram... Sobre a veracidade da história, passarei pisando em brasas, não como tio Mocchi, mas no modo figurado da coisa...
Entrou por uma porta, saiu pela outra, quem souber que conte outra...
Boa Semana!!!
Boa Semana!!!
3 comentários:
Vim logo a correr para colher o novo texto. E ainda estou sorrindo com essa história tão magnífica e com a graça que pôes na descrição.
Então o S. João tinha o pavio curto? E pavio será aquilo que me veio à ideia? Ou estarei simplesmente a ser mázinha?
As tuas histórias de família são sempre tão curiosas e bonitas.
É uma pena quando ficas mudo e quedo. A ver se para a semana há mais.
Um beijinho grande
Querida Ana
o tal pavio curto refere-se ao gênio explosivo do santo, e não tem nada a ver com sua maldadezinha.rsrs
Desse jeito serei excomungado pela Santa Sé! rsrs
Boa semana!
Essas histórias resgatam a história do Brasil também, porque descrevem personalidades que ajudaram a compor o povo que hoje está aqui. É tão interessante ler sobre os imigrantes. E tão interessante saber isso por intermédio das suas narrativas...
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