Quando criança eu não entendia o porquê daquela rispidez e impaciência de minha avó para com meu avô. Não entendia porque ela, tão boa para mim, o tratava daquele jeito seco, logo ele que também era tão bom comigo. Não esqueço das notas de duzentos cruzeiros esverdeadas que ele me dava, com a efígie da Princesa Isabel, e que eram o valor exato de um doce de bar. Mas era assim, um pequeno mistério. Não conversavam, e toda vez que ele mansamente se dirigia a ela, era tratado com uma raiva e impaciência indisfarçáveis. Ele morreu quando eu tinha 12 anos de idade, e só muito tempo depois vim a saber os motivos que levaram minha avó a tratá-lo assim. Uma desses motivos foi o que narro agora, e que deu origem a este pequeno conto.
Era véspera de Natal e ele a convidou para sair; iria levá-la para conhecer o Mercado Central. Chegada a poucos anos de Portugal, ainda existiam muitos lugares da cidade que ela não conhecia. Saíram de Artur Alvim, na Zona Leste rumo ao centro da cidade. (Aqui abro um parêntese: nessa época eles estavam morando na casa dos pais dela, a situação era difícil: meu avô tinha sido vítima de um golpe, e da noite pro dia vira-se sem nada, com uma mão na frente e outra atrás, e quatro filhas pequenas para alimentar).
Quando entraram no Mercado, os olhos dela brilharam: aquele movimento todo, o bruááá dos vendedores e clientes, tantos odores, tantas cores. Era um delírio de fartura: bancas apinhadas de bacalhau, queijos, frutas, azeitonas, vinhos. Sentia-se como se estivesse num sonho, e não queria acordar. Ficaram percorrendo aqueles infindáveis corredores, cheios de gentes e sacolas. Senhoras elegantes acompanhadas de criadas examinavam atentamente uvas e cerejas, ou escolhiam a posta de bacalhau mais bonita.
Claro que desde o momento em que ali entrou seu pensamento foi para as filhas que a esperavam em casa: quanta coisa gostosa podia levar para as meninas, elas bem que mereciam. Afinal, quanta vez lhes dera água com açúcar para enganar o estômago? Mal podia esperar para que ele decidisse parar numa banca e começar as compras. Sim, porque depois daqueles tempos difíceis as coisas haviam melhorado: ele tinha montado e vendido um bar, estava com dinheiro no bolso. Claro que não permitia extravagâncias, era o capital com que iria começar outro negócio, mas não fariam falta alguns cruzeiros.
Depois de andar por um bom tempo, ele disse que estava na hora de ir embora. Ela estranhou, afinal não haviam comprado nada ainda. Mas quando disse isso a ele, pronto, o mundo veio abaixo: estava louca, queria gastar dinheiro? Ele precisava comprar outro bar, não podia gastar com besteiras. Ela ficou tão atônita que nem conseguia raciocinar direito. Quando se deu conta da situação, ainda balbuciou: “Mas Zé, pelo menos um pedaço de queijo pras meninas”. Ele se enfureceu ainda mais: pegou-a pelo braço e foram em direção do ponto de ônibus. Ela desatou a chorar, e assim continuou por todo o trajeto, até chegar em casa. E não parou de chorar por toda a noite. Minha mãe também me contou essa história, e disse que esse foi o Natal mais triste de suas vidas: ela e as irmãs ouvindo o choro da mãe trancada no quarto, e o pai já “tocado” na sala, reclamando da vida.
Essa história eu ouvi de minha avó muitos anos depois, num dia que a levei até o Centro para conhecer a igreja do Carmo. Ficou-me na alma uma angústia, um nó na garganta, uma raiva surda contra meu avô, a mesma que sinto agora ao escrever essas linhas. Não sei o que o motivou, se sadismo, maldade, não sei. Talvez o tenha feito sem pensar, sem prever o que iria acontecer, o que é difícil de acreditar: levar a mulher - que tirava comida da boca para dar as filhas - na véspera de Natal ao Mercadão e sair de mãos vazias? Por que teria feito isso? Logo ele, que sempre me deu dinheiro para os doces...
Mas de nada adiantam esses sentimentos ruins, isso foi há tanto tempo...Porém, fiquei lembrando dessa história essa semana inteira, e uma idéia me veio à cabeça...
Aguardem até a próxima semana o desfecho desta história...
Enquanto isso,
Boa Semana e Feliz Natal!!!
quinta-feira, dezembro 21, 2006
Conto de Natal - Parte 1
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5 comentários:
O que será que passou na cabeça do seu avô para fazer isso? Talvez ele tivesse um outro jeito de associar as idéias. Ver todas aquelas coisas no mercado talvez para ele fosse instigar a determinação em, um dia, conseguir tudo aquilo. Há pessoas que não se contentam com pouco. Têm ambição para conseguir o muito. O único deslize dele, a meu ver, foi ter manifestado essa ambição boa justo na véspera de Natal...
Acredito que ele, em virtude dos tempos difíceis tão recentes, não tenha se dado conta do ecoar de seu ato egoísta e cego. Não creio que tenha sido por maldade, não, mas puro reflexo de "gato escaldado", que dá mais importância do que deveria a algo que não o afetaria tanto quanto imaginara. E tenho certeza de que se arrependeu. Mas não podemos voltar o tempo. Acho que os cruzeiros dos doces que ele lhe dava eram, de certa forma, uma tentativa de pagar uma dívida vitalícia que contraíra consigo próprio. No fim, é triste, mas ainda é uma bela história. Somos humanos, falíveis. E aprendemos com isso, para sermos mais humanos.
Um bom Natal pra ti :)
Ri...
Não vou falar sobre o que seu avô pensou ou o pq dele agir assim...
Só espero que no seu coração haja paz... e que ela seja transmitida aos demais com muito amor... dedicação e caridade...
E que vc vibre ao seu avô sentimentos bons, de carinho...
Pq nós devemos ter para com os outros tudo o que é bom que sintam por nós... Não julgue, não culpe... Ele já deve ter feito isso...
Feliz Natal...
Feliz Ano Novo!!
Te amo... estamos com mta saudade de vc... amigo amado...
Um Beijo carinho da Lu e do Gigio... que esta um homenzinho
Cá ficamos à espera do resto do conto. Entretanto aqui fica o meu abraço e os desejos de um Bom Natal e um Ano Novo muito feliz.
Beijinho
Gost muito do seu blog.
Bom ano 2007
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