quinta-feira, agosto 10, 2006

BOA SEMANA (28/11/2005) - O lenço

Todo sábado ele aparecia na feira, andando devagar, passos meios inseguros, roupa simples, já puída, mas muito limpa. Devia estar no fim da casa dos cinqüenta, mas aparentava ter bem mais, o rosto vincado de rugas, o cabelo ralo e grisalho. Chegava sempre no final da feira, quando tudo é mais barato e comprava algumas batatas, uma ou duas cebolas, dinheiro muito contado. Um dia ele se ofereceu para ajudar na desmontagem da barraca, em troca de um pouco de batatas. A dona da banca, estranhando, perguntou o motivo e ele, cabisbaixo, muito sem graça, disse que não tinha dinheiro para fazer a feira, por isso oferecia seu trabalho. Condoída, falou que ele podia dizer o que precisava, que não iria cobrar nada.
Subitamente o homem empinou o peito, levantou a cabeça e respondeu que não era um pedinte, que não queria nada de graça. Não tinha dinheiro, mas podia trabalhar. Ela assustou-se com a reação e explicou que não queria ofendê-lo, que ele poderia comprar o que precisava e pagar depois. Ele então aceitou, e disse que no próximo sábado pagaria sua dívida. Repetia que ela podia ficar tranqüila, que ele viria pagar, falou o endereço duas ou três vezes, insistia: “Pode deixar que sábado trago o dinheiro, a senhora fique tranqüila”.
Passada uma semana, lá estava ele, com o dinheiro para pagar o que devia; desmanchou-se em agradecimentos pela confiança depositada, e repetia que nunca poderia agradecer aquele gesto.
Desde então conversavam sempre, e ele contou que trabalhou mais de trinta anos como alfaiate, e dos bons, mas que um problema na vista começou a dificultar sua vida. Descobriu que tinha catarata. Logo não conseguia atender aos já escassos clientes e conseqüentemente pagar o aluguel da alfaiataria. Teve que desocupar o imóvel, e começou a trabalhar em casa. Mas as coisas só pioravam, pouca gente mandando fazer roupa, a visão cada vez mais fraca, a pensão que nunca saía, presa na burocracia que prima em vitimar os mais necessitados. Assim, ele se encontrava numa situação de quase penúria, vivendo de pequenos expedientes, uma barra de calça aqui, um remendo ali. Aos sábados, com o pouco que ganhava, vinha fazer a feira, sempre era mais barato.
A dona da barraca, penalizada, sem que ele percebesse colocava mais batatas do que ele havia pedido, cobrava menos do que a balança acusava, e até mesmo algumas roupas trouxe pra ele consertar. Ele só fazia por agradecer.
Passaram-se alguns meses, e um sábado ele apareceu, como de costume, mas vinha mais alegre, o rosto sem aquela sombra de tristeza. Cumprimentou-a efusivamente, e entregou-lhe um pequeno embrulho em papel pardo. Ela abriu o pacote e seus olhos encheram-se de lágrimas: ele havia bordado um lenço com as iniciais dela. Disse que era apenas uma mísera demonstração de gratidão por toda a ajuda recebida, e que nunca poderia retribuir tudo o que ela fazia por ele.
Passaram-se os anos, ela vendeu a barraca, deixou a feira e nunca mais teve notícia daquele senhor. Mas até hoje tem o lenço, guardado com carinho, e sempre que conta essa história seus olhos se enchem de lágrimas, lágrimas de alegria, por um dia ter visto a personificação da gratidão.
Boa Semana!

2 comentários:

Kandy disse...

dessa eu me lembro (da crônica, não da história... quem lê vai pensar que eu participei do acontecimento!). Relendo, lembrei-me da sensação que tive quando li a primeira vez: um nó na garganta difícil de desatar, um choro contido de emoção e empatia. Exemplos de bondade como esse, sobretudo hoje em dia em que está tudo invertido, são de fazer qualquer um chorar.

Kandy disse...

Ah, eu de novo!
Obrigada por mencionar meu blog aqui. Já retribuí a gentileza, com muito prazer!